terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A RELIGIÃO ESPÍRITA


Questões acerca da natureza do Espiritismo - III

Silvio Seno Chibeni

O presente artigo examina algumas questões ligadas ao aspecto religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado por Kardec ainda é objeto de discussão em alguns setores do movimento espírita.[1]

Questões:

a. Dentro dos conceitos atuais da ciência e da filosofia, como poderíamos classificar     o   Espiritismo? O que lhe parece a clássica apresentação do Espiritismo como uma         doutrina de conseqüências cientificas, filosóficas e religiosas?

b. Considerando essa forma de apresentar a doutrina, segundo seus aspectos básicos,          qual seria a diferença entre dizer-se “conseqüências religiosas” e “conseqüências                 morais”?
c. No GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo) tem-se discutido a aplicação da    designação de religião para o Espiritismo; aparentemente, não há divergências quanto à      sua classificação como ciência e filosofia. Segundo a filosofia, o que caracteriza uma            religião? Quais os limites entre ciência, filosofia, moral e religião? O Espiritismo é    uma religião?

Respostas:

A perspectiva para a compreensão do Espiritismo apontada no item (a) parece-me correta, desde que se mude um pouco a forma de expressão. Dizer que ele é uma doutrina “de conseqüências” científicas, filosóficas e morais implica considerá-lo como uma quarta coisa, da qual decorreriam essas conseqüências. Na verdade, poderíamos afirmar que ele constitui uma ciência associada a uma filosofia e a um sistema moral, ou, mudando a ênfase, uma filosofia com bases científicas e implicações morais.

Quanto aos itens (b) e (c), cumpre lembrar inicialmente que a moral (ou ética) é uma das áreas da filosofia, investigada com atenção por filósofos de todas as épocas, desde a Grécia Antiga até nossos dias. De modo muito simplificado, poderíamos defini-la como o estudo do bem e do mal. Seu problema fundamental é o estabelecimento de critérios pelos quais se possam distinguir as ações em boas e más, certas e erradas, ou, sob outro ângulo, avaliar criticamente os critérios propostos para tal fim pelas diferentes religiões, ideologias, sistemas políticos, etc.

Nunca houve uma sociedade humana civilizada totalmente destituída de códigos morais que estabelecessem limites para as ações dos indivíduos. Nos primórdios da civilização tais códigos usualmente baseavam-se nas concepções religiosas vigentes, a seu turno amplamente dependentes do ensino de indivíduos considerados especiais, tais como profetas, pitonisas, gurus, etc. Tais pessoas muitas vezes alegavam dispor de meios incomuns, sobrenaturais, de comunicação com a própria Divindade ou divindades; suas doutrinas eram, pois, tidas como “revelações”.

Especialmente a partir do Renascimento (séculos XV e XVI), a autoridade moral das religiões estabelecidas em tais bases começou a ser mais e mais questionada. O movimento intelectual de valorização das faculdades cognitivas naturais – a razão e a observação – encontrou terreno preparado pelas fragilidades teóricas do revelacionismo religioso que, ademais, havia tantas vezes conivido, legitimado ou participado diretamente de ações em franco desacordo com um certo sentido ético natural do ser humano (discriminações, perseguições, torturas, assassinatos, etc.).

Sob a influência vigorosa de grandes filósofos do período moderno, entre os quais cumpre destacar o inglês John Locke (1632-1704), as legislações civis dos povos mais esclarecidos foram se dissociando dos sistemas religiosos, quaisquer que fossem. Pontos altos desse processo foram, por exemplo, as revoluções inglesa (1688) e francesa (1789), e a assinatura da Constituição Americana (1789). Em todos esses episódios, os códigos de direitos e deveres dos cidadãos resultaram de deliberações e acordos tácitos ou explícitos de grupos laicos. Os filósofos acadêmicos modernos desenvolveram seus estudos éticos sob perspectivas diversas e nem sempre compatíveis umas com as outras, mas que em geral excluem consciente e explicitamente quaisquer fundamentos religiosos, teológicos ou místicos.

A moral sempre constituiu parte integrante das religiões. No entanto, estas não se resumem à proposição e defesa de sistemas morais, incluindo, de modo típico, cultos, liturgias e rituais diversos, hierarquias, princípios teológicos abstratos sem relação direta com a questão da conduta humana, etc. Foi essa bagagem-extra, aliás, o que mais repulsa causou aos chamados “livres-pensadores”, responsáveis pela renovação da filosofia e da ciência a partir do Renascimento, tendo conduzido, por um processo compreensível de exacerbação, ao ateísmo e ao materialismo, em graus sem precedentes na história da humanidade.

Perdidas as bases religiosas tradicionais, a ética teve dificuldades para estabelecer princípios de conduta objetivos. Nasceu daí uma vertente bastante visível na sociedade hodierna, que é o chamado relativismo ético, segundo o qual o que é certo ou errado, bom ou ruim, depende da pessoa, do grupo social, da época, etc. De forma oportunista, intelectuais (ou pseudo-intelectuais) têm explorado esse canal para tentar legitimar os mais aberrantes comportamentos individuais ou grupais, contribuindo assim decisivamente para a degeneração das estruturas psicológicas e sociais.

No campo da filosofia acadêmica, existem propostas éticas não-religiosas que procuram refutar o relativismo, dividindo-se em duas grandes classes: os sistemas éticos racionalistas, ou aprioristas, como o de Immanuel Kant (1724-1804), e o utilitarismo, que encontra raízes em Locke, mas só foi desenvolvido mais explicitamente por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se afirmar com razoável segurança que o efeito prático dos sistemas éticos do primeiro tipo sobre as sociedades contemporâneas é quase nulo, por razões que não vem ao caso examinar aqui. Quanto à segunda proposta, embora a palavra ‘utilitarismo’ tenha impropriamente adquirido uma conotação negativa fora dos círculos filosóficos, é inegável que repercutiu de forma profunda no estabelecimento dos melhores sistemas sociais existentes, quer do ponto de vista material, quer dos direitos humanos e do fomento às artes, ciências e filosofia. Mesmo nessas sociedades, porém, assiste-se hoje a crescente desvalorização das avaliações a longo prazo das ações humanas e ao esquecimento dos princípios filosóficos seguros que nortearam os seus fundadores, abrindo amplo espaço para o referido relativismo moral.

Quando devidamente compreendido, o Espiritismo traz contribuições importantes para todo esse panorama da ética, tão imperfeitamente esboçado aqui. Refinando e estendendo o conhecimento acerca do ser humano, ele permite a elaboração de uma ética objetiva e clara, explorando, com adaptações, a vertente de Bentham e Mill. Tratei desse assunto nos artigos “Os fundamentos da ética espírita” e “A excelência metodológica do Espiritismo” (seção 5), que devem ser consultados para o desenvolvimento ulterior desta resposta.

Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que com o conhecimento científico espírita a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo das conseqüências das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.

Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, a re-ligação da criatura ao Criador.

A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi lucidamente estudado e, a meu ver, esgotado, no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868. Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
* * *

No próximo artigo desta série começarão a ser abordadas algumas questões acerca da ciência espírita e temas correlacionados.

Referências:

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378. (Disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
––. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, p. 166-9.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)
––. Le Spiritisme est-il une religion? In: L’Obssession.Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l’Union Spirite, 1950. (Uma tradução confiável para o vernáculo, de Ismael Gomes Braga, pode ser encontrada no Reformador de março de 1976.)

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

Artigo publicado em Reformador, setembro de 1999, pp. 280-282.


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