quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O LIVRE-ARBÍTRIO1

  O que é o livre-arbítrio? A história do pensamento registra grandes e profundas reflexões a este respeito, o qual, em essência, significaria a capacidade que temos de fazer livremente as nossas escolhas, escolhendo fazer ou não fazer aquilo que queremos.

Mas será que somos realmente livres? Será mesmo que temos livre-arbítrio para escolher aquilo que queremos? Somos impelidos a responder pela afirmativa, pois nossas experiências diárias normalmente nos dão provas de que, sempre que nada exterior o impeça, eu faço aquilo que quero. Porém a questão de fundo é outra, bem mais complexa, profunda e intrigante: será que eu sou livre para querer aquilo que eu quero?

Duas correntes se formaram ao longo da história da filosofia para responder a esta questão. Conheçamos um pouco cada uma delas2.

A primeira corrente, que remonta às tradições filosóficas representadas modernamente por Descartes e Kant, entende que o livre-arbítrio do ser humano seria completamente arbitrário. O ser humano, portanto, seria capaz de sempre fazer qualquer escolha possível diante de qualquer situação. É dizer: entre dez escolhas possíveis a chance de escolher qualquer uma delas vai ser sempre igual, ou seja, de dez por cento.

Essa primeira tradição filosófica é a que foi adotada por praticamente todas as vertentes filosóficas espiritualistas, pois é com ela que se torna possível isentar Deus do mal que existe no mundo. O homem seria criado totalmente livre para escolher e fazer seu caminho, não sendo, portanto, culpa do Criador se a capacidade de escolha do homem, sempre absoluta, é usada para o mal. Caberia ao homem apenas sofrer as consequências de suas escolhas, para o bem ou para o mal, nesta ou noutra vida.

Já a segunda corrente, que é muito bem representada pelo pensamento de Spinoza e de diversos filósofos materialistas, defende que o livre-arbítrio, se é que existe, não é absoluto, pois o homem seria condicionado a fazer suas escolhas a partir daquilo que ele é. Se alguém escolhe ser mau, é porque ele é mau, porque a natureza o condicionou a tanto, desde que ele surgiu no mundo, para que ele assim o fosse. Portanto, o livre-arbítrio, entendido enquanto faculdade de sempre escolher o que se quer, seria uma espécie de ilusão, posto que, em verdade, não seríamos livres para querer aquilo que queremos.
Spinoza chega mesmo a propor uma imagem interessante, ao comparar aexistência do livre-arbítrio à “convicção” de uma pedra que pensa escolher ocaminho que percorre enquanto cruza o ar até o local onde vai cair.

Essa segunda tradição filosófica é a que encontramos em praticamente todas as filosofias materialistas, que entendem que o homem nada mais é do que um agregado de átomos, células e experiências de vida, que são o que verdadeiramente definem aquilo que ele é e, portanto, aquilo que ele quer. Seu livre-arbítrio seria sempre condicionado. Suas escolhas não poderiam ser diferentes daquelas que ele faz. Fica fácil perceber, portanto, a razão de praticamente nenhuma filosofia de tradição ou vertente espiritualista ter se filiado a esta segunda corrente, pois Deus passaria a ser culpado pelo mal que há no mundo. Afinal, se alguém pratica o mal e se esse alguém o pratica porque é mal (foi criado mal), então a culpa do mal praticado é daquele que o criou: Deus.

Então o Espiritismo, assim como as outras correntes filosóficas de tradição espiritualista, também partilharia da ideia de que somos absolutamente livres? É o que poderíamos concluir de uma leitura isolada da questão 121 de O Livro dos Espíritos:

121. Por que é que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal?

“Não têm eles o livre-arbítrio? Deus não criou Espíritos maus; criou-os simples e ignorantes, isto é, tendo tanta aptidão para o bem quanta para o mal. Os que são maus, assim se tornaram por vontade própria.”

Contudo, não é isto que pensamos, se fizermos uma leitura atenta da obra de Kardec. Isto porque, segundo a doutrina espírita, nossa capacidade de escolha é sempre limitada, limites estes que são impostos justamente por aquilo que somos e pelo que já conseguimos nos tornar. Vejamos algumas passagens das obras kardequianas em que fica claro o modo como os Espíritos ensinam o livre-arbítrio:

262. Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Pouco a pouco, porém, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, deixa-o senhor de proceder à escolha, e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos Espíritos bons. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”3

Vê-se, portanto, que o nosso espírito é o resultado de um processo de construção do próprio espírito, feito ao longo de várias encarnações. Neste processo, somos inúmeras vezes mergulhados dentro dos limites do corpo físico (reencarnações), inclusive sofrendo as influências que o organismo imprime à alma. É o que precisamos relembrar pela leitura de algumas questões de O Livro dos Espíritos:

370. Da influência dos órgãos se pode inferir a existência de uma relação entre o desenvolvimento dos órgãos cerebrais e o das faculdades morais e intelectuais?

“Não confundais o efeito com a causa. O Espírito dispõe sempre das faculdades que lhe são próprias. Ora, não são os órgãos que dão as faculdades, e sim estas que impulsionam o desenvolvimento dos órgãos.”

a) – Dever-se-á deduzir daí que a diversidade das aptidões entre os homens deriva unicamente do estado do Espírito?

“O termo unicamente não exprime com toda a exatidão o que ocorre. O princípio dessa diversidade reside nas qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado. Cumpre, porém, se leve em conta a influência da matéria, que mais ou menos lhe cerceia o exercício de suas faculdades.”

Encarnado, traz o Espírito certas predisposições e, se se admitir que a cada uma corresponda no cérebro um órgão, o desenvolvimento desses órgãos será efeito e não causa. Se nos órgãos estivesse o princípio das faculdades, o homem seria máquina sem livre-arbítrio e sem a responsabilidade de seus atos. Forçoso então seria admitir-se que os maiores gênios, cientistas, poetas, artistas, só o são porque o acaso lhes deu órgãos especiais, donde se seguiria que, sem esses órgãos, não teriam sido gênios e que, assim, o maior dos imbecis teria podido ser um Newton, um Vergílio, ou um Rafael, desde que de certos órgãos se achassem providos. Ainda mais absurda se mostra semelhante hipótese, se a aplicarmos às qualidades morais.
Efetivamente, segundo esse sistema, um Vicente de Paulo, se a Natureza o dotara de tal ou tal órgão, teria podido ser um celerado e o maior dos celerados não precisaria senão de um certo órgão para ser um Vicente de Paulo. Admita-se, ao contrário, que os órgãos especiais, dado existam, são consequentes, que se desenvolvem por efeito do exercício da faculdade, como os músculos por efeito do movimento, e a nenhuma conclusão irracional se chegará. Sirvamo-nos de uma comparação trivial, não obstante verdadeira. Por alguns sinais fisionômicos se reconhece que um homem tem o vício da embriaguez.
Serão esses sinais que fazem dele um ébrio, ou será a ebriedade que nele imprime aqueles sinais? Pode dizer-se que os órgãos recebem o cunho das faculdades.4

Vê-se assim que o espiritismo talvez seja a única filosofia espiritualista que defende o livre-arbítrio como uma faculdade que nunca é absoluta, pois nossas escolhas estão condicionadas àquilo que somos. Sim, somos livres para escolher o que queremos, mas nem sempre para querer o que queremos.
Nosso espírito, portanto, escolhe a partir daquilo que ele é. Se somos egoístas, invejosos, ciumentos, orgulhosos, enfim, viciosos e imperfeitos, então nossas decisões tenderão a obedecer os impulsos dados por essas características. Se somos generosos, humildes, caridosos, enfim, virtuosos e bons, então nossas decisões tenderão ao bem. Um espírito imperfeito não é capaz de fazer as mesmas escolhas de um espírito puro, pois aquele ainda precisa passar pelo processo de depuração que o faça galgar os degraus evolutivos da escala espírita5. Tais reflexões mostram como a doutrina espírita talvez acabe por se localizar filosoficamente muito mais próxima das correntes materialistas e spinozistas do que das espiritualistas tradicionais.

Façamos o teste e imaginemos, com alguns exemplos, se somos mesmo tão facilmente livres para escolher diante das seguintes situações: não ficar com raiva quando somos xingados ou agredidos; não sentir medo diante de uma situação que nos assusta; não sentir ciúme diante de alguém que amamos; confiar nas pessoas quando a esmagadora maioria das experiências que tivemos na vida nos induz a não confiar; uma criança dar-se a comer verduras quando sobre a mesa de refeições se encontram outras guloseimas; etc.

Então estaríamos fadados a nos conformar com o nosso ser, com aquilo que somos? Estamos então condenados a ser, agir e escolher apenas de acordo com aquilo que nos tornamos? Como sair desse círculo vicioso? Eis aqui a grande mudança de perspectiva proposta pelo espiritismo, pois ao tempo em que essa doutrina nos esclarece que estamos limitados a escolher a partir daquilo que somos, ela também nos esclarece que podemos, pela nossa vontade, mudar nossa natureza, inclusive tornando-nos capazes de escolher diferentemente do que escolhemos ao longo de todas as nossas existência precedentes, bem como na atual. Dissemos que a doutrina espírita é “mais próxima”, e não perfeitamente idêntica às filosofias materialistas, justamente porque a estas correntes de pensamento faltavam as peças capazes de explicar com maior exatidão esse complexo quebra cabeças chamado livre arbítrio, peças estas que são precisamente os conceitos de imortalidade da alma, de reencarnação e de progresso.

 Pelo conceito de imortalidade da alma, entendemos que não somos apenas matéria e que continuamos a existir após a morte do corpo físico, preservando todas as nossas características e tendências, intelectuais e morais. Pela ideia de reencarnação, passamos a compreender que o espírito já teve outras existências e que habitou multiplas moradas corpóreas, manifestando nos corpos em que reencarna as tendências, boas e más, que acumulou ao longo de suas existências pretéritas. Pela lei de progresso, enfim, fica claro que podemos e devemos evoluir ao longo de cada nova encarnação, as quais tem por objetivo justamente nos propiciar as condições necessárias para que possamos dar mais alguns passos no processo de aperfeiçoamento do espírito, rumo à nossa perfeição.

Portanto, o livre-arbítrio, segundo a espiritismo, não é um atributo pronto e acabado, recebido como uma “graça” de Deus, mas sim uma conquista do espírito, que é obtida ao longo de incontáveis encarnações e à medida que este evolui, tanto intelectual quanto moralmente, o que só ocorre ao longo e a partir do jogo de escolhas “tentativa-erro tentativa-acerto”, que nos demanda muito tempo. A natureza não dá saltos, e o homem, enquanto espírito perfectível, também faz parte da natureza.

Não fosse assim, seríamos absolutamente culpados por não conseguirmos agir tal qual um espírito puro, como Jesus, já mesmo em nossa encarnação atual. Não seríamos perdoáveis. Mas assim como um pai não exige de seus filhos pequenos que estes ajam como adultos, também Deus não exige perfeição de seus filhos (espíritos) que ainda estão atolados em processos e mundos – como a terra – carregados de limites e imperfeições.
Compreender isto é muito importante, pois faz com que adquiramos consciência para não viver nos culpando por ainda não sermos aquilo que achamos que já poderíamos ser.

Feitas estas considerações, fica bem mais fácil compreender porque o espírito pode até estacionar por um certo tempo em seu processo evolutivo, porém  amais degenerar, escolhendo assim, por exemplo, deixar de ser bom ou puro para voltar a ser imperfeito6. Daí porque é incompatível com a doutrina espírita qualquer teoria que defenda a “queda” do espírito, tais aquelas encontradas em correntes religiosas ou filosóficas que afirmam que a origem do mal ou do demônio residem na rebelião de um ou mais anjos contra Deus.
Afinal, se o espírito já é bom ou puro, segundo a escala espírita, então ele não pode mais fazer escolhas próprias de um espírito imperfeito, simplesmente porque não consegue, porque não é mais esta a sua natureza.

A partir de todas estas reflexões, restam ainda mais claras as razões pelas quais os espíritos nos recomendam a tolerância e a indulgência para com o próximo, pois não podemos exigir das pessoas atitudes que, pelo menos em determinado momento existencial, elas não podem ter. Misericórdia para todos, e para nós mesmos, pois ainda estamos aprendendo a fazer escolhas. Nas palavras de Sponville:

“Trata-se de compreender alguma coisa. O que? Que o outro é mau, se for, ou que está enganado, se estiver, ou que é fanático ou dominado por suas paixões, se paixões ou ideias o dominarem, enfim que lhe seria difícil, em todo caso, agir ao contrário do que ele é (por que milagre?) ou de se tornar subitamente bom, doce, razoável e tolerante... Perdoar:aceitar. Não para cessar de combater, é claro, mas para cessar de odiar.”7

Contudo, não podemos fazer deste conhecimento algo que nos leve ao comodismo. Lembremos que nossa vontade de mudar ainda é muito pequena.
Muitas vezes dizemos “quero deixar meus vícios”, mas muito satisfeitos ficamos que as coisas não sejam como “queremos”8. Contudo, se por um lado dificilmente poderemos nos tornar espíritos bons9 nesta encarnação, por outro os Espíritos também tem sempre insistido que nos é possível, mesmo na encarnação que vivemos agora, no planeta terra, conseguir evoluir a um ponto tal que não nos seja nem mesmo necessário reencarnar mais neste mundo. A este propósito, rememoremos a questão 909 de O Livro dos Espíritos:

909. Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?

“Sim, e por vezes fazendo esforços bem pequenos. O que lhe falta é a vontade. Ah! Quão poucos dentre vós fazem esforços!”

Podemos ver, enfim, que é a partir desse jogo dialético que as mudanças ocorrem em nosso espírito: eu transformo minha natureza a partir das diferentes escolhas que vou fazendo; e passo a fazer escolhas diferentes quando consigo mudar minha natureza. O processo é assim mesmo, aparentemente contraditório e que nos faz lembrar aquilo que em lógica échamado de “petição de princípio”10. Porém não é difícil concluir, empiricamente, analisando a vida dos outros e a nossa própria, que isso efetivamente ocorre, pois muitos de nós somos capazes, hoje, de já fazer algumas escolhas que alguns anos atrás eram absolutamente impensáveis.

Nossa história registra vários exemplos de homens que conseguiram fazer mudanças significativas na sua natureza, pois deram mostras, em uma mesma encarnação, de que no início de suas vidas ainda carregavam tendências características de espíritos imperfeitos, mas alguns anos depois já eram exemplos dignos de bons espíritos. É o caso de personalidades como Paulo de Tarso, Santo Agostinho e São Vicente de Paulo, dentre outros.

Diante destes exemplos, e de tantos outros até mesmo menos conhecidos, o estudioso mais atento do espiritismo poderia objetar que, em oposição ao ponto de vista aqui exposto sobre o livre-arbítrio, existiriam algumas passagens da obra kardequiana capazes de contrariá-lo11.
Entendemos, contudo, que não há oposição entre estas ideias, a não ser a partir de um ponto de vista puramente teórico. Importante registrar, contudo, que não devemos tratar a “vontade” como sinônimo de “livre-arbítrio”. O fato é que este é um assunto que também guarda uma certa complexidade – para não dizer polêmica – filosófica, não sendo esta a oportunidade adequada para desenvolvê-lo. Correríamos o risco de misturar prolongadamente o estudo desses temas12, o que não é o caso quando se trata apenas de um breve artigo. Longe estamos, porém, de pretender nos arrogar como detentores da verdade. Estudemos mais, reflitamos mais. Todos nós!

Deste modo, vê-se que, segundo o nosso entendimento da teoria espírita, o espírito não foi criado com livre-arbítrio, mas sim para, dentre outras coisas, adquirir livre-arbítrio. Contudo, esta conquista do livre-arbítrio nunca será absoluta – nem mesmo para o espírito puro, que não pode escolher degenerar –, pois sempre teremos nossas escolhas condicionadas à nossa natureza, àquilo que somos.

Assunto encerrado? De modo algum! Esperamos, contudo, que com este pequeno texto tenhamos podido despertar no leitor um pouco mais de desejo de mergulhar à fundo na obra de Kardec e dos grandes filósofos a fim de entender um pouco mais sobre esse tema tão rico, complexo e apaixonante que é o livre-arbítrio. Podemos até não nos tornar mais sábios, mas se pelo menos conseguirmos ficar menos ignorantes a tentativa já terá valido à pena.

Daniel A. Lima – 05 de outubro de 2012

Referência;

1 Para um estudo abrangente do assunto, recomendamos o áudio nº 23 do “Estudo das Paixões”, que
pode ser acessado pelo link http://www.geak.com.br/site/upload/midia/mp3/releitura-dos-itens-118-893-
2 Para um estudo mais abrangente do assunto, inclusive destas duas correntes, recomendamos a leitura do capítulo “Livre-Arbítrio”, no livro “Apresentação da Filosofia”, de André Comte-Sponville.
3 Confirmando o entendimento de que o livre-arbítrio se desenvolve à medida que o espírito progride, veja-se também as questões 122, 540, 564, 609, 780, 844, 847 e 849 de O Livro dos Espíritos.
4 Sobre as influências do organismo, ver também as questões 845 e 846 de O Livro dos Espíritos.
5 Fazemos menção à “Escala Espírita” tratada por Allan Kardec nas questões 100 a 113 de O Livro dos Espíritos.
6 Este assunto é tratado na questão 118 de O Livro dos Espíritos.
7 André Comte-Sponville, em “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, cap. 9 (Misericórdia), p. 134.
8 Ver a questão 911 de O Livro dos Espíritos.
9 “Bons” segundo a escala espírita.
10 A Petição de Princípio é uma forma de inferência que consiste em adotar, para premissa de um
raciocínio, a própria conclusão que se quer demonstrar. Ocorre sempre que se admite nas premissas o
que se deseja concluir. O caso mais óbvio é a mera repetição. Exemplo: “uma pessoa odeia as pessoas
de outra raça, porque é racista.”
11 Ver, por exemplo, O Evangelho Segundo o Espiritismo » Capítulo IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos » Instruções dos Espíritos » A cólera » Item 10
(http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=3217&idioma=1), bem como o texto da Revista Espírita de Julho de 1963 intitulado “Poder da vontade sobre as paixões”
(http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=5475&idioma=1).
12 Sobre o tema, ver, p. ex., a obra “Viver”, de André Comte-Sponville, Ed. Martins Fontes, cap. “Os
Labirintos da Moral”, Ed. Martins Fontes, 2ª edição, 2008, p. 174.

sábado, 1 de agosto de 2015

ESPIRITISMO DE VIVOS

Leopoldo Machado foi um dos iniciadores e concretizadores
de teses de educação e de teatro espírita

CEZAR BRAGA SAID

O “Espiritismo de vivos” tornou-se uma das bandeiras de um dos maiores espíritas que o Brasil já conheceu. Referimo-nos ao baiano Leopoldo Machado (1891-1957), nascido em Cepa Forte, hoje Jandaíra, completando-se este ano 50 anos de sua desencarnação.

Para fundamentar melhor este lema, Leopoldo chegou a escrever um livro intitulado Cruzada do Espiritismo de Vivos (1942)1 que, apesar do tempo, ainda permanece bastante atual pelo enfoque e pelo conteúdo. Nele, declara por meio de dez pontos, o que pretendia com semelhante bandeira.

Desejava e propunha um Movimento Espírita voltado principalmente para os encarnados, sem qualquer demérito para as práticas mediúnicas e para as relações estabelecidas com o mundo espiritual. Mas questionava o fato de a mediunidade, que ignifica“meio”, ser encarada e vivida com um fim em si mesma por alguns companheiros. Acreditava ser necessário se cultivar o intercâmbio sério e salutar com os Espíritos, mas não cultuá-los, reforçando os atavismos que trazemos do passado, muitas vezes ratificados na atual existência.

Entendia a evangelização da criança e do jovem como priori  prioridade nas atividades do Centro Espírita e que as mesmas deveriam se dar por meio da música, da poesia, da literatura, do teatro, da arte espírita de um modo geral. Educador que era, reconhecia que sem alegria, dinamismo e criatividade, não teríamos uma ação evangelizadora genuinamente prazerosa e verdadeiramente educativa.
Valorizava imensamente os movimentos confraternativos onde todos podemos estreitar laços,  aprender juntos por meio de conversas edificantes, em horas construtivas de convivência e de apreciação da arte espírita.

 Foi um dos grandes entusiastas das juventudes espíritas, do processo de Unificação que teve como marcos maiores o “Pacto Áureo” e a Caravana da Fraternidade, da qual foi integrante ativo juntamente com Lins de Vasconcellos, Francisco Spinelli, Carlos Jordão da Silva e Ary Casadio.

Afirma Antonio Cesar Perri, em livro de Eduardo Carvalho Monteiro, que no campo da Unificação Leopoldo teve uma ação pioneira que antecede mesmo a assinatura do “Pacto Áureo”, pois “participou do Congresso Brasileiro de Unificação Espírita (São Paulo, 1948) e, na seqüência, foi responsável pelo I Congresso de Mocidades Espíritas do Brasil (Rio de Janeiro, 1948). O dinâmico divulgador foi um dos iniciadores e concretizadores de teses de educação e de teatro espírita. Atuou como filantropo, expositor, polemista e autor de vários livros. Os reflexos de obras de Leopoldo estão presentes em todas as partes do país até quando se entoa a ‘Canção da Alegria Cristã’, pois é co-autor desta difundida música espírita”.2

A Caravana da Fraternidade percorreu 11 Estados do Norte e Nordeste, colhendo adesões ao “Pacto Aúreo” e divulgando os objetivos da Unificação. Em seu programa constavam conferências para o grande público, mesas-redondas com o objetivo de se chegar a consensos em torno do ideal unificacionista, visitas às instituições espíritas de assistência social, levando estímulos aos seus fundadores e colaboradores, além de programas sociais organizados pelos confrades que os recebiam.

De acordo com Clóvis Tavares,3 Leopoldo Machado publicou cerca de 30 livros e deixou mais 20 que, infelizmente, não vieram a lume. Escreveu por 24 anos para a revista Reformador, publicando poesias, crônicas, artigos e conferências.
Foi também colaborador assíduo dos periódicos O Clarim e Revista Internacional de Espiritismo, além de inúmeros outros jornais espíritas.
Espírito ativo fundou uma escola que até hoje é dirigida por seu sobrinho (Colégio Leopoldo, 1930), um lar destinado inicialmente ao abrigo de velhinhos e crianças (Lar de Jesus, 1942), um albergue noturno e uma escola de alfabetização na instituição espírita onde militou durante muitos anos, o Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade, na cidade de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.

A seu respeito, disse Carlos Imbassahy que “[...] dificilmente encontraremos nas fileiras do Espiritismo outro propagandista com tanta energia, com tanta coragem, com tanta personalidade.  Tal ou qual festividade corria mais ou menos fraca. Nisso aparecia Leopoldo; tudo se modificava, o seu gênio alegre, comunicativo, logo se transmitia a todos. O ambiente se enchia de vibração nova. Ele emprestava vida a tudo a que se associava”.4

Também o lúcido pensador, autor e divulgador espírita Deolindo  Amorim afirmou que Leopoldo era um espírita muito ativo, inconformado com a displicência, não compreendia o Espiritismo de “câmara mortuária” e por isso era vibrante e contagiante. Disse ainda Deolindo que  ambos tinham lá suas diferenças, mas isso não impedia que um e outro se quisessem bem e se olhassem como amigos: “Divergimos, mais de uma vez, em determinados pontos de vista, e nunca lhe escondi a minha objeção a esta ou aquela de suas opiniões, mas a nossa amizade nunca se rompeu, felizmente. Leopoldo Machado deixou, nas fileiras espíritas, um claro dificilmente preenchível. Que ele possa, do outro lado, na espiritualidade, continuar a nos dar estímulo [...]”.5

Decerto que este grande companheiro desaprovaria qualquer culto em torno da sua personalidade, mas muitas vezes vivemos à cata de novidades, novos autores, novas práticas e vamos seguindo esquecidos dos pioneiros, dos que pavimentaram o caminho para que pudéssemos ter um movimento mais liberto, arejado, valorizando o estudo e as relações mais cristãs, realmente fraternas.

Recordar Leopoldo Machado e conhecer o seu legado é fazer um tributo a todos os pioneiros do Espiritismo que, enfrentando dificuldades sem conta, souberam erseverar abrindo clareiras contra o preconceito e o divisionismo, em prol de um movimento onde possamos estar sempre ombro a ombro e sempre lado a lado, como companheiros, amigos e irmãos que vivem alegres não apenas pensando, mas fazendo o bem e nos querendo uns aos outros, também muito bem.

 Referências:

1MACHADO, Leopoldo. Cruzada do espiritismo de vivos. Matão: O Clarim, 1942.

2MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Leopoldo Machado em São Paulo. São Paulo: USE, 1999.
3RAMOS, Clóvis. Leopoldo Machado. Idéias e ideais. Rio de Janeiro: CELD, 1995.
4 Jornal A Voz da União.
5AMORIM, Deolindo. “Algumas palavras sobre Leopoldo Machado”. Revista Internacional
de Espiritismo. Matão: O Clarim, 1957.


Fonte;  Reformador Ano 125 / Maio, 2007 / N o 2.138

A SALVAÇÃO SEGUNDO O ESPIRITISMO


Apesar do conceito de “Filosofia” ser um dos mais controversos da história do pensamento, uma das definições que reputamos seja uma das mais úteis e felizes é aquela dada pelo filósofo francês Luc Ferry, para quem a filosofia seria a busca de caminhos para vencer nossas angústias e medos relacionados à vida e à morte, utilizando para isso as nossas próprias forças e a razão1.

Ao seguirmos essa linha, estudando o Espiritismo através do prisma filosófico da salvação, vemos que os aspectos passíveis de serem explorados são números. Neste artigo, porém, ficaremos adstritos a apenas um deles, embora, em nosso entender, o principal. Isto porque, quando se trata de falar de salvação segundo a Doutrina Espírita, a mais importante ideia relacionada ao tema é aquela sintetizada por Allan Kardec na frase: “fora da caridade não há salvação”2. Vamos, então, tentar brevemente entender, interpretar e contextualizar um pouco desta afirmativa do Codificador.

O estudo sistemático do Espiritismo nos leva a compreender que a verdadeira caridade nos impele a praticá-la em suas três formas: benevolência,
indulgência e perdão3. A explicação da abrangência deste conceito, em seu tríplice modo de se manifestar, não será objeto deste artigo, dada a profundidade das sequências que cada um desses aspectos tem nas nossas vidas. Por agora, o que cabe ressaltar é que a prática da caridade não se restringe a servir ao próximo (benevolência), pois em pé de igualdade com ela também se encontram duas outras virtudes: a indulgência e o perdão4.

Partindo-se desta premissa, qual seria considerada a melhor e mais proveitosa caridade a ser feita, para nós e para o próximo? Seria participar da preparação de um “sopão” para os que passam fome? A visita a asilos de idosos ou a orfanatos? A doação de tempo e/ou dinheiro para instituições beneficentes? O auxílio e a visita a doentes? A divulgação da Doutrina Espírita e do bem de uma maneira geral? Compreender e tolerar as imperfeições e limitações do próximo? Perdoar aqueles que nos fizeram o mal? Não importa! Isto porque o fundamental, segundo a filosofia espírita, não é o gesto em si, porém os sentimentos e o (des) interesse que nos impelem a faz ê-lo. É claro que aqueles de nós que já conseguem se doar ao próximo com dedicação e carinho, esmo que não tenham sequer refletido a respeito da razão pela qual fazem isto – se por interesse pessoal ou não –, e assim aprendem a ser felizes, já deram um significativo salto evolutivo, de maneira que agir deste modo será sempre melhor do que não fazer nada ou do que fazer o mal. Isso não nos impede, contudo, de tentar ir um pouco mais além e de buscar entender a essência da caridade ensinada pela doutrina espírita.

Lembremos que a definição do nosso bem estar no plano espiritual não depende da quantidade de gestos bons que fizemos quando encarnados, mas sim da qualidade dos fluidos que envolvem e formam nosso perispírito. Por sua vez, este é determinado pela nossa evolução moral, que não é, segundo a Ciência Espírita, determinada por nossos gestos exteriores, mas sim pela verdadeira vivência das virtudes no nosso íntimo. Vejamos algumas passagens da obra “A Gênese” que bem ilustram isto:

A natureza do envoltório fluídico está sempre em relação com o grau de adiantamento moral do Espírito. (...).



Também resulta que: o envoltório perispirítico de um Espírito se modifica com o progresso moral que este realiza em cada encarnação, embora ele encarne no mesmo meio. (...).
(...). Ora, do mesmo modo que os peixes não podem viver no ar; que os animais terrestres não podem viver numa atmosfera muito rarefeita para seus pulmões, os Espíritos inferiores não podem suportar o brilho e a impressão dos fluidos mais etéreos. Não morreriam no meio desses fluidos, porque o Espírito não morre, mas uma força instintiva  os mantêm afastados dali, como a criatura terrena se afasta de um fogo muito ardente ou de uma luz muito deslumbrante. Eis aí por que não podem sair do meio que lhes é apropriado à natureza; para
mudarem de meio, precisam antes mudar de natureza, despojar-se dos instintos materiais que os retêm nos meios materiais; numa palavra, que se depurem e moralmente se transformem.5

Portanto, o “céu”, ou seja, a salvação, para aqueles que bem compreendem o Espiritismo, é um estado da alma, como bem ensinaram Kardec e os espíritos em diversas passagens da codificação, dentre elas a seguinte:

“A felicidade está na razão direta do progresso realizado, de sorte que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto outro,  unicamente por não possuir o mesmo adiantamento intelectual e moral, sem que por isso precisem estar, cada qual, em lugar distinto. Ainda que juntos, pode um estar em trevas, enquanto que tudo resplandece para o outro, tal como um cego e um vidente que se dão as mãos: este percebe a luz da qual aquele não recebe a mínima
impressão. Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram, seja à superfície da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espaço. (...). Nessa imensidade ilimitada, onde está o Céu? Em toda parte. Nenhum contorno lhe traça limites.”6

A mesma coisa disse Jesus no Evangelho de Lucas:

“Interrogado pelos fariseus sobre quando havia de vir o reino de Deus, respondeu-lhes, e disse: O reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o reino de Deus está dentro de vós.”7

A parábola denominada de “O Óbolo da Viúva”, contada por Jesus, também ilustra esta ideia. Ali se narra que:

Estando Jesus sentado defronte do gazofilácio, a observar de que modo o povo lançava ali o dinheiro, viu que muitas pessoas ricas o deitavam em abundância. – Nisso, veio também uma pobre viúva que apenas deitou duas pequenas moedas do valor de dez centavos cada uma. – Chamando então seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta pobre viúva deu muito mais do que todos os que antes puseram suas dádivas no gazofilácio; – que todos os outros deram do que lhes abunda, ao passo que ela deu do que lhe faz falta, deu mesmo tudo o que tinha para seu sustento.8

Por que a viúva, que pouco deu comparado às pessoas ricas, tinha mais mérito? Porque o sentimento que a movia para ajudar era sincero e verdadeiro, capaz de sacrificar até mesmo suas próprias necessidades e interesses. Portanto, pouco importa, ao final, que a quantidade doada seja grande, se o sentimento por trás do gesto é pequeno.

Aliás, vivêssemos nós sujeitos a uma “contabilidade moral” – precisa, atemática e absoluta
–, como explicaríamos a salvação de Paulo de Tarso, um exemplo de vida em que se pode ver o salto de um Espírito ainda cheio de más paixões para se transformar em Espírito bom em uma mesma encarnação9? Fosse implacável a lógica ensinada por Jesus em advertência a Pedro10, Paulo ainda teria tido de reencarnar inúmeras vezes a fim de expiar todas as injustiças e mortes pelas quais foi responsável em relação ao cristianismo e seus adeptos. Contudo, muito mais importante do que a Lei de Talião (olho por olho, dente por dente) é o princípio segundo o qual “o amor cobre a multidão de pecados”. Foi justamente o que Paulo entendeu e viveu.

Nós, porém, muitas vezes entendemos estes conceitos equivocadamente, achando – e, pior, divulgando – que todo mal que sofremos é consequência de um erro que cometemos no passado, ou que todo mal/erro que praticarmos hoje terá que ser necessariamente sofrido de volta no futuro. E não percebemos que esta ideia nos joga dentro de uma lógica perversa e insolúvel, que só poderia ser legitimada por um Deus sádico e malvado.

Aliás, a parábola dos “Trabalhadores da Última Hora” também nos ensina muito a este respeito. Dentre as várias lições que podem ser extraídas desta passagem, uma delas, que por agora vai nos interessar, diz respeito ao fato de que para ser “salvo” não é preciso “trabalhar” no bem a mesma e precisa quantidade daqueles que começaram primeiro, mas sim integrar-se ao trabalho com o mesmo amor e piedade11.

Sobre o assunto também é importante lembrar a questão 919 de O Livro dos Espíritos, que trata do autoconhecimento. Ali, Santo Agostinho pede que nos perguntemos, ao nos questionarmos sobre nossa conduta diária, se teríamos vergonha de nós mesmos, caso fossemos chamados de volta ao mundo dos espíritos, “onde nada pode ser ocultado, notadamente nossos pensamentos”.

A provocação feita por Santo Agostinho é bastante válida e nos faz lembrar uma alegoria contada por Platão no livro “A República”. Nela um pastor, chamado Giges, encontra por acaso um anel que lhe dá poderes para ficar invisível às outras pessoas. Aproveitando-se desta sua nova e inesperada faculdade, Giges muda seu caráter e passa a praticar uma série de más ações: mata o rei, seduz a rainha e assume o poder12. E então, como será que nos comportaríamos se encontrássemos o anel de Giges, de Platão, e nos tornássemos invisíveis? Será que continuaríamos nos preocupando com nossa conduta ética? Será que resistiríamos à tentação e aos prazeres do mal se soubéssemos que nossos atos não seriam testemunhados pelos olhos dos outros?

Outra alegoria interessante pode ser extraída de uma conhecida obra de ficção. No filme “Drácula”, dirigido por Francis Ford Coppola, são exibidas diversas passagens em que o vampiro conversava de um modo educado e cavalheiresco com as pessoas, porém sua sombra, que seprojetava atrás da cena, movia-se de modo independente, denunciando e refletindo assim o seu real pensamento e vontade.

Pois bem. Deixando de lado o fantasioso destas alegorias, poderíamos comparar nossas faculdades, na erraticidade, às de Giges quando usa o anel, e nosso perispírito à “sombra do Drácula”, pois nosso Espírito ali, além de invisível a muitos, não possuirá mais a máscara do corpo físico, que possibilita a contenção dos nossos pensamentos dentro de limites bem mais estreitos, o
que nos permite assim ser até mesmo hipócrita diante do outro, sem que queles que convivem conosco necessariamente percebam essa falsidade de sentimentos. Tal como Kardec nos ensinou:

“Criando imagens fluídicas, o  pensamento se reflete no envoltório perispirítico, como num espelho; toma nele corpo e aí de certo modo se fotografa. Tenha um homem, por exemplo, a ideia de matar a outro: embora o corpo material se lhe conserve impassível, seu corpo fluídico é posto em ação pelo pensamento e reproduz todos os matizes deste último; executa fluidicamente o gesto, o ato que intentou praticar. O pensamento cria a imagem da vítima e a cena inteira é pintada, como num quadro, tal qual se lhe desenrola no espírito.
Desse modo é que os mais secretos movimentos da alma repercutem no envoltório fluídico;
que uma alma pode ler noutra alma como num livro e ver o que não é perceptível aos olhos do corpo.”13

Assim, por maior que seja a quantidade de tempo que tenhamos dedicado em nossa encarnação praticando a beneficência, se não tivermos melhorado ossos sentimentos e promovido verdadeiramente nossa moralização íntima, domando assim nossas paixões, de nada esse bem exterior terá adiantado. Talvez isto penas nos faça sentir mais culpados.

Portanto, a caridade que salva, aquela preconizada por Kardec, não é um gesto, mas um estado de espírito, que deve estar presente em nós permanentemente, pois a qualquer momento poderemos ser chamados a praticá-la – p. ex., numa simples conversa, diante da dificuldade de pessoas que não conhecemos, em horas e lugares inesperados, etc. –, e não apenas em momentos pré- determinados e reservados por nós para fazer o bem, como aqueles em que estamos no grupo espírita. Logo, conclui-se que fora dos verdadeiros sentimentos que nos impelem à caridade, ou seja, fora da vivência legítima e sincera das virtudes em nosso íntimo, é que não há salvação.

Vemos, portanto, que é um equívoco interpretar a prática da caridade segundo um entendimento de “troca”, de uma “contabilidade das boas ações”. Contudo, parece-nos que, apesar da compra e venda de indulgências como meio de garantir um lugar no “céu” ter deixado de existir faz muitos séculos, nós talvez ainda tragamos em nosso subconsciente – o que em boa parte se explica pela reencarnação – a mesma lógica de troca e barganha com Deus, por meio da qual eu obtenho a salvação bastando para isso apenas fazer algum gesto exterior de natureza caritativa. Daí porque ainda hoje muitos de nós continuamos pretendendo “comprar o céu”, não mais com dinheiro, porém acumulando o bem apenas pela prática de tais gestos, sem se importar intimamente em reformar o caráter réprobo que ainda carregamos.

Mas o Espiritismo é muito exigente, pois não basta viver e praticar a beneficência. Essa vivência, além de ser sincera e verdadeira, tem que se assentar no mais puro desinteresse14. E este desinteresse abrange inclusive as consequências que daí possam advir à nossa condição na vida futura. Vejamos o que os Espíritos dizem a este respeito, na questão 897 de O Livro dos Espíritos:

897. Merecerá reprovação aquele que faz o bem sem visar a qualquer recompensa na Terra, mas esperando que lhe seja levado em conta na outra vida e que lá venha a ser melhor a sua situação? E essa preocupação lhe prejudicará o progresso?

“O bem deve ser feito caritativamente, isto é, com desinteresse.”

a) – Contudo, todos alimentam o desejo muito natural de progredir, para forrar-se à penosa condição desta vida. Os próprios Espíritos nos ensinam a praticar o bem com esse objetivo.
Será, então, um mal pensarmos que, praticando o bem, podemos esperar coisa melhor do que temos na Terra?

“Não, certamente; mas aquele que faz o bem sem ideia preconcebida, pelo só prazer de ser agradável a Deus e ao seu próximo que sofre, já se acha num certo grau de progresso, que lhe permitirá alcançar a felicidade muito mais depressa do que seu irmão que, mais positivo, faz
o bem por cálculo e não impelido pelo ardor natural do seu coração.” (894)

b) – Não haverá aqui uma distinção a estabelecer-se entre o bem que podemos fazer ao nosso próximo e o cuidado que pomos em corrigir-nos dos nossos defeitos? Concebemos que seja pouco meritório fazermos o bem com a ideia de que nos seja levado em conta na outra vida; mas será igualmente indício de inferioridade  emendarmo-nos, vencermos as nossas paixões, corrigirmos o nosso caráter, com o propósito de nos aproximarmos dos Espíritos bons e de nos elevarmos?

“Não, não. Quando dizemos fazer o bem queremos significar ser caridoso. Procede como egoísta todo aquele que calcula o que lhe possa cada uma de suas boas ações render na vida futura, tanto quanto na vida terrena. Nenhum egoísmo, porém, há em querer o homem melhorar-se, para se aproximar de Deus, pois que é o fim para o qual devem todos tender.”
 Importante lembrar, por fim, que essa salvação pela caridade independe de sermos adeptos do Espiritismo, bem como do fato de sermos frequentadores ou trabalhadores de qualquer grupo espírita15. De fato, pouco importa quantas vezes alguém foi para o estudo ou quantas aulas ou palestras  ministrou, ou quantos artigos sobre Espiritismo escreveu, se isto não ocasionou uma melhoria verdadeira no íntimo do indivíduo. Porém, parece que às vezes preocupamo-nos mais em “converter” as pessoas ao Espiritismo do que em tentar ser um exemplo de homem de bem.
Preocupamo-nos demasiadamente em salvar o mundo e os outros, quando deveríamos primeiramente trabalhar para nos salvar de nós mesmos, dos  nossos vícios, de nossos defeitos e de nossos apegos aos bens materiais. Façamos isto e já estaremos fazendo muita coisa, por nós, pelos outros e pelo
mundo também.

E apesar de nossa meta ser um dia conseguirmos agir por desinteresse, devemos ter consciência de que não o conseguiremos imediatamente. Então comecemos a agir no bem, ainda que de início isto ocorra por interesse “na nossa salvação”, e aí aos poucos o desinteresse irá ganhando lugar. Isto nos faz recordar mais uma belíssima frase de Kardec que, ao comentar os efeitos do pensamento no homem, lembra que “se o egoísmo o levava a desconhecer as consequências, para outrem, de um pensamento perverso, pessoalmente seu, por esse mesmo egoísmo ele se verá induzido a ter bons pensamentos, para elevar o nível moral da generalidade das criaturas, atentando nas consequências que sobre si mesmo produziria um mau pensamento de outrem16.

Desta forma, se alguém quiser saber se, após a morte, será “salvo”, se terá um “bom lugar” no mundo espiritual, que pergunte a si mesmo: as virtudes, o bem e o amor já fazem parte indissociável do meu ser e do meu íntimo? Estou pronto para expor aos outros – porque, na erraticidade, não terei mesmo como esconder – tudo aquilo que penso, já que, mesmo invisível (espírito) para os encarnados, eu só pensarei nas virtudes, no bem e no amor? Minha vida passou a girar fundamentalmente em torno da caridade desinteressada? Independentemente de onde, como ou a quem fiz o bem, eu o fiz e continuaria a fazer, desinteressadamente, sem esperar nada em troca, mesmo que eu me tornasse invisível e soubesse que ninguém estaria fiscalizando meus atos? Eu já estou habituado em tentar me tornar uma pessoa de bem, independentemente da minha condição financeira ou social? Enfim, se essa pessoa conseguir responder sim a estas perguntas, então não deve se preocupar com sua sorte futura, se conseguirá se salvar ou se irá para “o céu”, pois na verdade ela já estará salva e habitando-o aqui mesmo!

Daniel A. Lima - 10 de Novembro de 2011

Referência;

1 Para uma abordagem ampla do conceito de filosofia enquanto soteriologia, ou seja, enquanto estudo da salvação através da razão,
ver o excelente livro de Luc Ferry, “Aprender a Viver”.
2 Capítulo XV de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
3 Ver a questão 886 de O Livro dos Espíritos: Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus? “Benevolência
4 Para uma análise mais ampla do tema, ver o artigo “Caridade e Amor”, de Silvio Seno Chibeni, em
http://www.geak.com.br/site/upload/midia/pdf/caridade_e_amor_-_silvio_chibeni.pdf
5 As três passagens foram extraídas, respectivamente, dos itens 9, 10 e 11, Cap. XIV, da obra “A Gênese”.
6 O Céu e o Inferno, Primeira Parte, Doutrina, Capítulo III - O Céu, item 06.
7 Lucas 17: 20 e 21.
8 Marcos, 12: 41 a 44; e Lucas, 21: 1 a 4.
9 Para um melhor entendimento da vida de Paulo de Tarso, conferir a obra “Paulo e Estevão”, psicografada por Francisco Cândido
Xavier.
10 “Pedro, embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão.” (Mateus 26: 52)
11 Para uma correta compreensão da palavra “Piedade”, ver o artigo de Terezinha Colle, “Sobre a Palavra Piedade”, em
http://www.geak.com.br/site/upload/midia/pdf/sobre_a_palavra_piedade.pdf
12 A República, Livro II.
13 A Gênese, Cap. XIV, item 15.
14 Ver a questão 893 de O Livro dos Espíritos.
15 982. Será necessário que professemos o Espiritismo e creiamos nas manifestações espíritas para termos assegurada a nossa sorte
na vida futura?
“Se assim fosse, seguir-se-ia que estariam deserdados todos os que não crêem, ou que não tiveram ensejo de esclarecer-se, o que seria
absurdo. Só o bem assegura a sorte futura. Ora, o bem é sempre o bem, qualquer que seja o caminho que a ele conduza.” (165-799)
A crença no Espiritismo ajuda o homem a se melhorar, firmando-lhe as ideias sobre certos pontos atinentes ao futuro. Apressa o
adiantamento dos indivíduos e das massas, porque faculta nos inteiremos do que seremos um dia. É um ponto de apoio, uma luz que
nos guia. O Espiritismo ensina o homem a suportar as provas com paciência e resignação; afasta-o dos atos que possam retardar-lhe a
felicidade, mas ninguém diz que, sem ele, não possa ela ser conseguida.
- Ver também a parábola do bom samaritano, no ESE, cap. XV, e ainda o item 9 deste mesmo capítulo.
16 Obras Póstumas, Capítulo “Fotografia e Telegrafia do Pensamento”. A frase de Kardec se se assemelha a esta outra, de Sócrates: “Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade.”