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sábado, 21 de novembro de 2015

KARDEC, O PENSADOR


Hermínio C. de Miranda

Não se pode medir a importância e profundidade das ideias dos pensadores pelo êxito que alcançam ao publicar as suas obras. Alguns sistemas filosóficos passam por um período mais longo ou mais curto de hibernação até que consigam despertar a atenção e o interesse dos leitores. Outros, que parecem surgir vitoriosos, fenecem com o tempo e cedem a praça a novos sistemas fascinantes à fantasia do homem na sua busca interminável da verdade.
Existirá alguma lei que determine ou que, pelo menos, explique essas variações de êxito dos sistemas filosóficos? Parece que há. Para início de conversa, creio poder afirmar-se que o êxito, em termos humanos, é uma componente quantitativa mais do que qualitativa. Em outras palavras: o sucesso é alcançado por aquele que consegue interessar o maior número de pessoas e não pelo que tem o melhor sistema, a melhor peça teatral, o melhor romance, a mais bela sinfonia. Por conseguinte, podemos também concluir que o êxito mundano de um sistema filosófico depende da sua sintonia com o pensamento dominante de cada época. Dando um passo mais à frente, parece legítimo afirmar, em consequência, que pensador de êxito é aquele que consegue interpretar e traduzir o sentimento e as tendências dominantes da sua época, ou, por outra, que se afina com o estágio evolutivo das maiorias. Isto vale dizer que cada época tem os filósofos que merece.
Não é difícil de demonstrar a tese. Pelas tendências da sociedade moderna, podemos facilmente inferir os tipos predominantes de pensadores e seus sistemas. E que vemos? Uma esmagadora maioria humana sem rumo, num esforço desesperado para libertar-se dos conceitos fundamentais da moral que, embora nem sempre bem observados, constituíram as bases de tudo de positivo e construtivo que se realizou ao longo dos séculos. Aquilo a que hoje assistimos é a busca desordenada da liberdade total, impossível em qualquer sociedade organizada. Assistimos à procura do prazer a qualquer custo. E vemos apreensivos a repetição de épocas dramáticas do passado, quando aprendemos, através da História, que a fuga desesperada na direção do gozo inconsequente é também uma fuga para longe de Deus.
O homem das megalópoles supercivilizadas é um ser sem rumo, tão frágil na sua aparente segurança, tão abandonado aos seus próprios recursos humanos, que não aguenta uma hora de solidão; quer estar cercado de ruídos, de risos – ainda que falsos –, de alegria – ainda que contrafeita –, de movimento – mesmo que arriscando a vida. Mas que é a vida para esse homem, senão apenas o prazer de viver? Existir é a ordem do dia; não importa como, nem porque, nem para que: o importante é existir pura e simplesmente, seguindo cada qual as suas inclinações e preferências, fazendo o que bem entender, com o mínimo possível de responsabilidade pessoal e social – apenas o necessário para garantir a sobrevivência do corpo. Também, se o corpo morrer, não tem grande importância, porque tudo termina mesmo com a morte… E quanto aos ruídos, os risos, a alegria e os movimentos não conseguem anestesiar suficientemente os sentidos, apela-se para o atordoamento produzido pela bebida e pelas drogas.
Dirá o leitor, algo alarmado, que esse é um retrato pessimista e exagerado da civilização moderna. Talvez seja exagerado; pessimista não, porque nem toda a humanidade está assim contaminada, graças a Deus. Dentro dela grupos humanos equilibrados lutam por dias melhores, aparentemente bradando no deserto, mas semeando a esperança do futuro, preocupados com a alucinação do presente, mas certos do funcionamento inevitável das leis divinas que atuarão no devido tempo para introduzir as correções necessárias.
Enquanto isso não ocorre, porém, é aquele o espetáculo a que assistimos. E do meio do tumulto universal da insatisfação humana, que filosofias e que pensadores vemos medrar vigorosamente e alcançar o sucesso? Jean Paul Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir, Camus, e até Gabriel Marcel, que pregam a ausência de Deus, o absurdo da existência, a liberdade total para o homem escolher o seu próprio destino. São os papas e cardeais do existencialismo, uma corrente de pensamento que só cuida do simples fato de existir; o resto não importa, pois, segundo eles, a vida não tem mesmo explicação, nem finalidade, nem sentido.
No campo da teologia, temos os pensadores da chamada teologia radical. São eles William Hamilton e Thomas J. J. Altizer, que se dizem teólogos – e luteranos! – de uma teologia sem Deus. Para eles, Deus morreu. Para eles, não há mais, na sociedade moderna, lugar para Deus. A humanidade precisa aprender a viver sem Deus. Pregam uma das grandes contradições do século, ou seja, o ateísmo teológico. Repetem as palavras de outro luterano famoso – Dietrich Bonhoeffer, executado pelos nazistas já ao fim da Segunda Guerra, que assegurava ser perfeitamente possível viver sem Deus, sem desespero e sem complexos de culpa.
No campo social vamos encontrar Herbert Marcuse, o profeta do caos, que, com sua interpretação freudiana da História, deseja ver liberados todos os instintos porque, segundo ele, o processo civilizador tem sido uma sucessão de repressões. Por outro lado, numa contradição que nós, pobres mortais, não entendemos muito bem, receita a liberdade excessiva que transformaria a Terra num inferno. Suas doutrinas são tão nebulosas quanto sua linguagem hermética, quase iniciática.
Aliás, os pensadores do nosso tempo – filósofos, teólogos e uma boa parte dos cientistas – não escrevem mais para o grande público, gente como você e eu: ao contrário, usam uma linguagem difícil, quase impenetrável ao entendimento daqueles que não tiveram muito treinamento para isso. Praticamente escrevem apenas para seus companheiros do mesmo ofício. Procurem ler, por exemplo, “Eros e Civilização” ou “Ideologia da Sociedade Industrial”, de Marcuse, e observem bem como é pequena a quantidade de ensinamentos que se consegue filtrar daquela terminologia agreste e abstrata.
São esses, no entanto, os guias atuais da inquietação humana, os orientadores dos que ainda não encontraram seus caminhos. São os que se afinam com as tendências da época.
Não criaram propriamente um sistema; apenas converteram em palavras as angústias e a desorientação da época em que vivem. E por estarem em sintonia com a sua época, com a sua gente e com o estágio evolutivo dessa gente, alcançam o êxito mundano, passam a ser os pensadores da moda.
Enquanto isso, doutrinas amadurecidas e puras como o Espiritismo esperam a sua vez. Esperam que a humanidade as alcance, porque, pela sua maturidade, exigem certo grau mínimo de maturidade de seus adeptos. Por isso, Allan Kardec continua ignorado nas universidades, nos estudos de filosofia, nas histórias do pensamento humano. Apesar da celeuma que levantaram as ideias que ajudou a trazer para o mundo, foi também ignorado em sua época – não estava em sintonia com as maiorias de então.
Ao nascer Allan Kardec em 1804, a França acabava de emergir das crises e das agonias da Revolução Francesa. Brilhava o astro napoleônico e se ensaiava uma reconstrução da sociedade em novas bases, aproveitando o racionalismo, o cientificismo. Quase que junto com Kardec, com uma diferença a mais de seis anos, nasceu também Augusto Comte, o filósofo do Positivismo, doutrina escorada na frieza do fato observado. Fora da observação direta dos sentidos humanos, nada era digno de especulação – estava na área da metafísica. Nessa filosofia também não havia lugar para a sobrevivência do Espírito, nem para Deus. O “Curso de Filosofia Positiva” foi publicado entre 1830 e 1842 e o “Sistema de Política Positiva”, de 1851 a 1854. É praticamente a época em que Kardec começou  a se interessar pelo fenômeno das mesas girantes, de tão tremendas consequências.
Em 1857, quando faleceu Comte, surgiu também “O Livro dos Espíritos”. O Positivismo era uma doutrina vitoriosa, porque respondia às tendências principais da especulação da época. O racionalismo frio dos enciclopedistas era ainda recente e deixara profundas marcas nos Espíritos. Comte trabalhara ativa e demoradamente esse terreno fértil e parecia realmente sintonizar-se com as correntes dominantes dos intelectuais contemporâneos. Suas doutrinas se espalharam pelo mundo, e aqui no Brasil, terra tão generosa para as ideias novas, viriam influenciar os homens que lançavam as bases da República. No entanto, apesar de todo o seu idealismo, do sentido humano, e da predominância da moral, faltou à doutrina de Comte o sentido superior da existência. Para ele, eram estéreis as especulações em torno do Espírito e da ideia de Deus, que nem mesmo como hipótese de trabalho entrava nas suas cogitações. Depois da partida dos Espíritos encarnados que lhe davam ressonância, o Positivismo decaiu no interesse daqueles que se ocupam da discussão de ideias.
Com Kardec está acontecendo o contrário: estão chegando os Espíritos que reconhecem nas suas ideias a marca da Verdade. Já naquela época, a despeito da tremenda oposição que encontrou, conseguiu semear largamente a sua seara. Sabia que a colheita não iria ser imediata, nem espetacular, porque apenas uma fração da humanidade estaria madura para aceitar a sua pregação, mas que importa isso para aquele que tem a certeza de estar ao abrigo da Verdade?
Uma pergunta poderá, no entanto, surgir da parte de alguém: Foi Kardec um pensador, um filósofo no sentido em que conhecemos a palavra? A resposta é: Positivamente, sim. Sua obra pode ser dividida em duas partes distintas: uma, a que escreveu, por assim dizer, a quatro mãos com os Espíritos – “O Livro dos Espíritos”; outra, a que escreveu ainda com evidente assistência espiritual, mas com seus próprios recursos e ideias que assimilara no trato dos problemas transcendentais que haviam sido colocados no primeiro.
A muito leitor desavisado poderá parecer de pequena monta o trabalho individual, pessoal, de Kardec na elaboração de “O Livro dos Espíritos”, mas não é isso que se passou. Imagine-se um de nós, o leitor ou eu, diante da tarefa. Sabemos apenas que nos incumbe escrever, com a colaboração dos Espíritos, uma obra de extraordinária importância.
É, porém, extremamente cautelosa a colaboração dos Espíritos. A princípio nem mesmo dizem que a tarefa consiste em escrever um livro para instrução do mundo nas coisas espirituais. Não dizem que feição deve ter o trabalho, a que roteiro deverá obedecer. Guiado apenas pelo seu bom senso e pela sua sadia e viva curiosidade, Kardec vai fazendo as perguntas sobre aquilo que lhe interessa conhecer. A princípio – confessaria mais tarde – desejava apenas instruir-se na exploração daquele mundo maravilhoso de conhecimentos que se abria diante dele. O assunto o fascinava, porque lhe trazia respostas a perguntas que até então haviam ficado sem solução no seu espírito. Daí por diante, tudo se aclarava: Deus existia realmente, como existia o Espírito. Este sobrevivia, preexistia e se reencarnava. Os “mortos” se comunicavam com os “vivos” e o universo todo era regido por leis morais flexíveis mas iniludíveis. Cada um tinha a responsabilidade pelos seus atos, recompensas pelas suas vitórias, responsabilidades pelas suas falhas. Os seres, como os mundos, eram organizados em escala hierárquica de valores, onde predominavam as leis simples da moral. A teologia ortodoxa estava toda ela precisando de uma total reformulação nos seus conceitos mais queridos, mais essenciais. Não havia inferno, nem glórias eternas, ao cabo de uma única existência terrena.
Tudo isso surgia das suas conversas intermináveis com os Espíritos. Só o decorrer do tempo e a acumulação das respostas é que lhe vieram mostrar que perguntas e respostas tinham uma estrutura que lhes era própria e adquiriam a feição de um livro que ele resolveu dar à publicidade, pois que se ele aprendera ali tanta coisa útil, embora totalmente revolucionária, era necessário transmitir tais conhecimentos aos seus semelhantes.
E assim surgiu, em 1857, “O Livro dos Espíritos”, obra básica, vital ao entendimento de toda a filosofia espírita. Pela primeira vez rasgavam-se os véus que ocultavam a Verdade. Pela primeira vez se escrevia uma obra reveladora de tão profundos conhecimentos, em linguagem singela, ao alcance de qualquer pessoa. Bastava saber ler ou saber ouvir o que alguém lesse.
Mas não parava ali a tarefa do grande missionário. Era preciso prosseguir, extraindo da nova doutrina as consequências que ela acarretaria sobre os demais ramos do conhecimento humano. Podemos imaginar Kardec a fazer a si mesmo algumas perguntas. Como ficaria a doutrina evangélica de Jesus, diante daquelas ideias? E a Ciência? E a religião dita cristã? Como funcionava essa estranha faculdade a que deu o nome de mediunidade? Dessas perguntas, surgiram os demais livros da sua obra.
E assim, de 1854, quando, aos 50 anos de idade, Kardec se interessou pelo fenômeno das mesas girantes, até 1869, quando regressou ao plano espiritual, decorreram os 15 anos libertadores que a humanidade ainda não aprendeu a reconhecer pelo que realmente valem e pelas influências cada vez maiores que vão exercer no futuro.
Fonte: Reformador, ano 87, n. 3, p. 19(63)-21(65), mar. 1969.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

DESOBSESSÃO E "CRISE DE ABSTINÊNCIA"


Waldehir Bezerra de Almeida

Desobsessão é tratamento oferecido pelas Casas espíritas aos que sofrem o assédio de Espíritos inferiores, impingindo-lhes sofrimentos psíquicos, físicos e morais. Quando a criatura fica por muito tempo jungida ao Espírito obsessor, cuja carga fluídica é nociva não somente à organização psíquica, mas, também, à estrututa físico-perispiritual, a interrupção do processo de forma apressada gera sintomas desagradáveis no ex-obsidiado, assemelhando-se àqueles que acometem os viciados em drogas, quando não as têm para consumir, vivenciando a crise ou síndrome de abstinência: conjunto de modificações orgânicas que se dão, em razão da suspensão brusca do consumo de droga geradora de dependências física e psíquica. A crise apresenta sintomas como disforia, insônia, ansiedade, irritabilidade, náusea, agitação, taquicardia e hipertensão.
Nós, os trabalhadores da área mediúnica, nem sempre levamos em consideração esse fato. Mas o alerta da Espiritualidade é antigo. A Revista Espírita, de junho de 1864, às páginas 241-242, (edição FEB), publicou uma reportagem intitulada “Relato Completo da Cura da Jovem Obsedada de Marmande”. Dela destacamos fragmentos das informações e orientações dadas pelo Espírito Pequena Cárita:

Meus bons amigos, bani todo o medo; a obsessão está acabada e bem-acabada; uma ordem de coisas estranhas para vós, mas que logo vos parecerão naturais, talvez seja a consequência desta obsessão, mas não obra de Jules [o Espírito obsessor]. [...] Hoje, que conheceis a doutrina, a obsessão ou a subjugação do ser material se vos apresenta não como um fenômeno sobrenatural, mas simplesmente com um caráter diferente das doenças orgânicas. O Espírito que subjuga penetra o perispírito do ser sobre o qual quer agir. O perispírito do obsedado recebe como uma espécie de envoltório, o corpo fluídico do Espírito estranho e, por esse meio, é atingido em todo o seu ser; [...] Quando o Espírito abandona sua vítima, sua vontade não age mais sobre o corpo, mas a impressão que recebeu o perispírito pelo fluido estranho de que foi carregado, não se apaga de repente e continua ainda por algum tempo a influir sobre o organismo. No caso de vossa jovem doente: tristezas, lágrimas, langores, insônias, distúrbios vagos, tais são os efeitos que poderão produzir-se em consequência dessa libertação; mas, tranquilizai-vos, vós, a menina e sua família, pois essas consequências não representarão perigo para ela. [...] Agora é preciso agir sobre o próprio Espírito da menina, por uma doce e salutar influência moralizadora. [...]. (Destacamos.)

Como vemos, na fonte primária do Espiritismo, já encontramos elucidações a respeito da “crise de abstinência”. Essas informações são atualmente confirmadas pelas Entidades espirituais responsáveis pela complementação do Espiritismo, codificado por Allan Kardec. Confiramos.

Afastado do conúbio permanente com Mariana [a obsidiada], graças à interferência dos Benfeitores Espirituais, Guilherme [o obsessor] esteve todo o tempo em tratamento especializado, de modo a refazer o campo mental, secularmente aba¬lado pelo ódio infeliz e destruidor. Mariana, por sua vez, que já vivia aclimatada psiquicamente às vibrações do seu perseguidor, sentiu-lhe a ausência desde o momento em que Saturnino recolhera ao aconchego da prece aquele que se lhe fizera verdugo inconsciente e pertinaz. No dia imediato à primeira incorporação de Guilherme, a jovem, após retornar ao lar, deixara-se abater por forte prostração [...] A jovem amanheceu, portanto, indisposta e perturbada. [...] Ao entardecer, como Mariana continuasse em doloroso desconserto emocional, [...] o irmão Saturnino, [...] interessado em acalmar a família aflita, esclareceu, bondoso: − Mariana, conforme verificamos nos trabalhos espirituais da noite passada, vinha sendo vítima de uma obsessão em grave desenvolvimento. Vinculada pelo passado culposo ao atormentado companheiro que se lhe transformou em adversário vingador, absorveu durante alguns anos as energias deletérias em que se via envolvida, criando um condicionamento psíquico, que, embora desgastando o seu organismo, lhe servia, também e simultaneamente, de sustentação. Libertada da constrição perturbadora, conforme acompanhamos durante os trabalhos desobsesivos, ressente-se e padece as consequências da falta dos fluídos pesados...1 (Destacamos.)

O médico de Nosso Lar enriquece o conhecimento, deixando claro que não devemos ter pressa em desatar os laços obsessivos existentes entre a vítima e o algoz, considerando as intrincadas energias fluídicas das quais se nutrem mutuamente.

Hilário e eu, instintivamente, abeiramo-nos de Odila para afastá-la com a presteza possível, mas o instrutor generoso deteve¬-nos com um gesto, advertindo: − A violência não ajuda. As duas [obsessora e obsidiada] se encontram ligadas uma a outra. Separá-las à força seria a dilaceração de consequências imprevisíveis. A exasperação da mulher desencarnada pesaria demasiado sobre os centros cerebrais de Zulmira e a lipotimia poderia acarretar a paralisia ou mesmo a morte do corpo. [...] 2

No livro Loucura e obsessão, temos um caso em que o afastamento do obsessor levou o ex-obsidiado a óbito! Em uma reunião mediúnica, o esclarecedor solicita ao obsessor que ele deixe a sua vítima e ouve a seguinte resposta:

Você pede-me que o liberte e não tem ideia do que solicita. A palavra liberte terá um significado muito profundo, quase terrível para você e para ele, para a família, caso eu concorde com o apelo. Estamos tão intimamente ligados, quanto a planta parasita na árvore que a hospeda. Com o tempo, as raízes da naturalmente enxertada penetraram na seiva da outra, gerando tremenda simbiose. Ambos nos necessitamos para viver. Embora eu aqui me encontre, estou vinculado a ele... Se eu arrancar-me do seu convívio físico e mental, eu me desequilibrarei muito, e o corpo dele morrerá... [...] Seu filho morrerá, então, infelizmente. Sem mim, ele não sobreviverá. Escolha: tê-lo comigo, ou, sem mim, perdê-lo.

O pai do obsesso concordou com a libertação, e o filho desencarnou pouco tempo depois, em razão da crise de abstinência!

A irmã Emerenciana, que acompanhou o caso ao lado de Bezerra de Menezes, pergunta ao Mentor se a desencarnação de enfermo em razão do afastamento do obsessor era frequente, e ele respondeu: − Muito mais constante do que se pode imaginar. A minha primeira experiência, nessa área, ocorreu quando eu me encontrava na Terra. Compreendo a dor dos pais de Alberto, porquanto minha esposa e eu a sofremos nos recônditos da alma, quando um ser querido nosso e nós e seus familiares passamos por idêntico transe. 3(Destacamos.)

Após os ensinamentos acima, diante do irmão que necessita de tratamento desobsessivo, tenhamos pressa em acolhê-lo com caridade, mas sem precipitação, lembrando que a sua cura depende de muitos fatores que vão além da nossa boa vontade. Ministremos-lhe os passes, as orientações evangélicas de vida cristã que a Doutrina Espírita nos oferece e contemos com a sabedoria dos Mentores espirituais da instituição que melhor conhecem cada caso.
Concluindo, não acreditamos em método desobsessivo que não dê primazia ao diálogo com o encarnado e com o desencarnado, ajudando-os para que se elevem moralmente pela evangelização e conquistem a reforma íntima, pois não há obsessão sem consciência culpada, e mente equivocada fazendo-se de justiceira. Observamos que, no plano espiritual, as reuniões mediúnicas com intenção de desfazer a ligação nefasta entre encarnado e desencarnado prima sempre pelo diálogo, buscando sempre a reforma íntima dos envolvidos. Remetemos o prezado leitor ou leitora para o que acontece no “Sanatório Esperança”, dirigido pelo nobre Espírito Eurípedes Barsanulfo, quando atendeu ao irmão Ambrósio, internado naquele hospital. O objetivo era libertá-lo do seu algoz. A certa altura, diz o Venerável Eurípedes Barsanulfo ao estudioso da obsessão, Philomeno de Miranda:

Iremos tentar deslocar algumas das mentes que prosseguem vergastando-o, atraindo os seus emissores de pensamentos destrutivos a conveniente e breve diálogo, para, em ocasião própria, torná-lo mais prolongado, mediante cuja terapia procuraremos liberá-lo das camadas concêntricas de amargura e de culpa, de necessidade de punição e de fuga de si mesmo, até o momento de despertamento do sono reparador, que lhe foi imposto por força das circunstâncias. 4 (Destacamos.)

Feita a prece pelo apóstolo de Sacramento, tudo sucedeu como nas reuniões mediúnicas aqui na Terra: uma das senhoras presentes entrou em transe psicofônico, dando a sagrada oportunidade a que o verdugo de Ambrósio dissesse das suas razões de obsediar Ambrósio. Em seguida travou o diálogo, cujo resultado foi extremamente positivo. (Destacamos.)

1. FRANCO, Divaldo Pereira. Bastidores da obsessão. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 7. ed. Salvador, BA: LEAL, cap.7, p. 133.
2. XAVIER, Francisco Cândido. Entre a terra e o céu. Pelo Espírito André Luiz. 1. ed. especial, Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2003, cap. 3, p.21-22.
3. FRANCO, Divaldo Pereira. Loucura e obsessão. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 3. ed. Salvador, BA: LEAL, 1990, capítulos 19 e 20.
4. idem. Tormentos da Obsessão. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 1. ed. Salvador, BA: LEAL, 2001, p. 159.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

CIÊNCIA ESPÍRITA


SILVIO SENO CHIBENI

Le Spiritisme est une science qui traite de la nature, de l'origine et de la destinée des Esprits, et de leur rapports avec le monde corporel.

Allan Kardec

1. INTRODUÇÃO: CIÊNCIA E PSEUDO-CIÊNCIA

Com a frase em epígrafe, que figura no Preâmbulo do importante livro O que é o Espiritismo, Allan Kardec indica, de modo sumário porém preciso, o objeto de estudo do Espiritismo, enquanto ciência. Quando a escreveu, em 1859, Kardec já havia, ao longo de alguns anos de investigações teóricas e experimentais intensas, desenvolvido suficientemente o Espiritismo para poder afirmar sem hesitação que se tratava de uma nova disciplina científica. Como é bem sabido, os desdobramentos filosóficos e morais que essa disciplina comporta foram igualmente objeto de grande atenção por parte de Kardec. No presente trabalho centralizaremos nossa análise no aspecto científico do Espiritismo, atendendo à natureza desta seção da Revista Internacional de Espiritismo.[1]

A questão de que características tornam uma disciplina merecedora do qualificativo científica tem ocupado lugar proeminente nos estudos dos filósofos da ciência. Notadamente nas últimas três décadas, progressos significativos foram realizados no sentido de se lhe oferecer uma resposta satisfatória. Um dos elementos mais importantes nesse aperfeiçoamento de nossa concepção de ciência foi a maior atenção que os filósofos da ciência passaram a atribuir à análise detalhada da história da ciência, dentro de uma abordagem historiográfica renovada.

Reconhece-se hoje entre os especialistas que a concepção comum de ciência padece de defeitos sérios, por não resistir nem a variados argumentos filosóficos recentemente levantados, nem ao confronto com a descrição da gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da Física, da Química e da Biologia. Os elementos problemáticos dessa visão ordinária de ciência, esposada tanto pelo homem comum como por expressiva parcela dos próprios cientistas, compareciam igualmente nas concepções que os filósofos defendiam até a primeira metade de nosso século. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida como Positivismo Lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930. Por motivos que não cabe aqui examinar, essa posição filosófica exerceu entranhada influência sobre os cientistas, e essa influência perdura até nossos dias, a despeito daquela concepção haver sido abandonada há muito pelos filósofos.

Esses fatos são importantes em nossa análise das linhas de pesquisa que pretendem competir com o Espiritismo, pois elas começaram a surgir precisamente quando o Positivismo Lógico fornecia os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como se percebeu depois, aquelas linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso conhecimento no domínio do espírito.

Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores da Parapsicologia e demais linhas de investigação que surgiram após ela a não somente empenharem infrutiferamente os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima ciência do espírito, surgida ainda no século XIX, a saber, o Espiritismo.

Em trabalhos anteriores (ver Nota 1, acima) procuramos fornecer alguns detalhes dessa situação, que embasam as afirmações precedentes. Essa tarefa pressupõe, naturalmente, a comparação dos fundamentos, estrutura e métodos do Espiritismo com aqueles que as investigações recentes em Filosofia da Ciência mostraram caracterizar as disciplinas paradigmaticamente científicas, como a Física, a Química e a Biologia. Não há espaço para reproduzir aqui as análises que empreendemos naqueles trabalhos. Para fins de completude, porém, indicaremos a seguir, de forma simplificada, alguns de seus pontos principais.

Grosso modo, a visão comum de ciência envolve a assunção de que uma ciência inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos seguros e neutros para obter as teorias científicas, que seriam descrições objetivas da realidade investigada.

O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da atividade científica não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis. Observação e teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas a imaginação criadora do homem desempenha um papel essencial na gênese das teorias científicas.

A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das conquistas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, simplificadamente, de um núcleo teórico principal, formado por hipóteses fundamentais. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento futuro. De um lado, há as regras "negativas", que estipulam que nesse desenvolvimento os princípios básicos do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidas inalteradas. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares; regras "positivas" sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas.

Ao contrário do que se supõe na visão comum de ciência, não há restrições sobre a natureza das leis de uma teoria científica, que podem inclusive ser de caráter predominantemente metafísico. A restrição fundamental é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. O exame das teorias científicas maduras e dos padrões avaliativos adotados pelos cientistas indica ainda que algumas características devem necessariamente estar presentes em qualquer boa teoria científica. Inicialmente, ela deve ser consistente. Deve ser abrangente, explicando um grande número de fatos. Deve, por fim, apresentar as virtudes estéticas de unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há ainda o vínculo externo de que uma teoria não deve conflitar com as demais teorias científicas bem estabelecidas que tratam de domínios de fenômenos complementares (por exemplo, uma teoria biológica não deve pressupor leis químicas e físicas que contrariem as leis bem assentadas da Química e da Física).
2. O ESPIRITISMO COMO CIÊNCIA

A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos esses requisitos de uma ciência genuína. Em artigo anterior ("A excelência metodológica do Espiritismo") procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec admiravelmente antecipou- se às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, e compreendeu essa realidade. Sua visão de ciência, exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde à visão moderna e justa mencionada acima. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que possibilitou o surgimento de uma verdadeira ciência do espírito.

O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos. O exame dessa obra revela sua consistência e seu alto grau de coesão, uma notável concatenação das diversas leis, a amplitude de seu escopo, e o perfeito casamento da teoria com os fatos. Ademais, ali estão implícitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas. Parte significativa desses desenvolvimentos foi, como se sabe, levada a cabo pelo próprio Kardec, e se acham exarados nas demais obras que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência, o desenvolvimento experimental e teórico do Espiritismo prosssegue até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.

Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da Física, quer da Química ou da Biologia. É de crucial importância notar, como o fez Kardec,[2] que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com as referidas ciências, do mesmo modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.

A percepção dessa distinção evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm ameaçado até mesmo o próprio Movimento Espírita. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste em determinadas investigações envolvendo experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens de uso nos laboratórios de Física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados à Física. Assume-se, assim, que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre incompreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade a essas investigações.

Dada a relevância da elucidação dos sérios enganos envolvidos em semelhantes alegações, nesta Seção e na seguinte nos deteremos um pouco mais sobre elas.[3]

A observação mais importante é a de que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação cabal desse princípio se dá através dos fenômenos a que denominou "de efeitos intelectuais", quais sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita isentamente sobre fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito de modo inequívoco as tentativas de "explicações" alternativas que se têm procurado oferecer surgirão como ridículas.

Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo. Neste último caso, o "grau teórico" (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da observação empírica direta. Em tal caso, o caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante indireto e tortuoso, passando por uma série de teorias auxilires, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser asseridos fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos diferentes; a história da Física e da Química tem ilustrado a vulnerabilidade de suas teorias.

No caso do princípio espírita em questão (bem como de vários outros dos princípios básicos do Espiritismo), a situação é bastante diversa. Trata- se de um princípio pertencente à classe de princípios a que os filósofos denominam "fenomenológicos", que estão na base do edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de que o Sol existe, de que o fogo queima e a cicuta envenena, a de que determinado familiar veio nos visitar no dia tal e nos deixou uma caixa de bombons, etc. Nestes casos, embora explicações alternativas sejam em princípio possíveis,[4] elas são tão inverossímeis que não merecem o assentimento de nenhum ser racional. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exempo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões e expressam pensamentos peculires e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os abundantes e variados casos de psicografia de que todos somos testemunha. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie (como por exemplo os que nos têm oferecido a extraordinária mediunidade de Chico Xavier) é suficiente para eliminar qualquer dúvida.

Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, os casos de vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apoia-se também, em virtude de oferecer-lhes explicações científicas, em uma multidão de fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicosomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.

Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. Referindo-se às suas impressões diante das realidades novas que se lhe iam descortinando através de suas cuidadosas observações e raciocínios, Kardec assim se expressou: "Logo compreendi a gravidade da exploração que ia empreender; entrevi naqueles fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução do que eu havia procurado durante toda a minha vida; era, numa palavra, toda uma revolução nas idéias e nas crenças (...)".[5] "O estudo do Espiritismo é imenso", disse Kardec em outra passagem; "interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós." [6]
3. PSEUDO-CIÊNCIAS DO ESPÍRITO

Na Seção precedente iniciamos a enumeração dos métodos e procedimentos anti-científicos que caracterizam as linhas de pesquisa alternativas do espírito, indicando que a natureza de seu objeto de estudo é tal que o recurso a aparelhos e a métodos quantitativos em geral é dispensável e mesmo arrriscado, pelos enganos a que pode levar. Isto vale pelo menos quanto ao estabelecimento dos princípios fundamentais da ciência do espírito, concebendo-se que em um futuro distante o detalhamento de alguns pontos mais técnicos, como por exemplo os relativos às leis dos fluidos, possa requerer uma integração mais estreita com a física e a química mais refinadas de então.

Prosseguiremos agora nossa enumeração, começando por um tópico ligado ao que expusemos no final da Seção precedente. Referimo-nos à abrangência do Espiritismo. O escopo dessa ciência é incomparavelmente mais amplo do que o de todas as teorias alternativas. Uma inspeção destas últimas mostra que consideram apenas uns poucos fenômenos isolados, sem levar em consideração uma multidão de outros, igualmente relevantes.

Esse desprezo de fatos importantes resulta essencialmente de duas fontes: 1) preconceitos e interesses diversos; e 2) falta de um corpo teórico que norteie a pesquisa experimental. Quanto ao primeiro fator, não há o que comentar. Quanto ao segundo, notemos que está intimamente ligado à falsa concepção de ciência adotada, que imagina ser possível se fazer ciência sem teoria.

Outra deficiência séria que apresentam esses sistemas não-espíritas é que mesmo para os grupos reduzidos de fenômenos que levam em conta, as explicações oferecidas pecam pela falta de unidade e organicidade, recorrendo a leis e princípios desconectados.

Além disso, tais explicações em geral falham em satisfazer um outro requisito fundamental de uma genuina explicação científica: a simplicidade. As explicações são em geral ainda mais inexplicáveis que os fatos que se propõem a explicar.

Encontramos ainda explicações puramente verbais, ou seja, que não apresentam qualquer conteúdo, limitando- se ao uso de termos técnicos, buscados nas diversas ciências ou criados a esmo, procurando-se com isso conferir ares científicos à suposta explicação. Muitas pessoas não familarizadas com a ciência deixam-se fascinar por tais artifícios, não percebendo que qualquer explicação satisfatória deve caracterizar-se pela clareza e inteligibilidade (como nos dá magnífico exemplo o Espiritismo) e que o recurso à linguagem técnica só é legítimo dentro do contexto teórico que lhe é próprio.

Outro tipo freqüente de deficiência que notamos nos sistemas que pretendem competir com o Espiritismo refere-se ao recurso a conceitos e teorias científicas obsoletos, ou o uso não-profissional das teorias contemporâneas. As ciências, principalmente a Física e a Química, passaram por transformações radicais em nosso século as teorias atuais envolvem conceitos extremamente abstratos, distantes da intuição do senso comum, além de técnicas matemáticas de grande complexidade. Em seus aspectos essenciais, essas teorias não são acessíveis ao leigo, que, quando instruído, em geral ainda tem para si a imagem do mundo fornecida pelas teorias do século passado. Os muitos livros de popularização da ciência via de regra não resolvem esse problema; mesmo quando são escritos por profissinais (o que é raro), inevitavelmente têm de recorrer a simplificações drásticas, que resultam em distorções sérias na imagem que oferecem das teorias expostas. Como resultado, a virtual totalidade das pessoas que têm se aventurado a estabelecer vínculos diretos entre os fenômenos espíritas e as teorias da Física cai, ou no recurso a teorias superadas, ou em confusões que mostram-se ridículas aos olhos dos cientistas com formação profissional. Essas pessoas acabam pois involuntariamente prestando um desserviço à causa da investigação científica do espírito.

Mais um fator importante que entrava as linhas de pesquisa não-espíritas é o sistemático desprezo pelas contribuições anteriormente efetuadas por outros pesquisadores. Cada um quer começar tudo de novo, e criar seu próprio sistema. Se a dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o avanço do conhecimento. Se nas ciências acadêmicas se tivesse adotado semelhante atitude, elas estariam ainda em seus primórdios.
Por fim, lembramos ainda que muitas das tentativas não-espíritas de estudo dos fenômenos espíritas fracassam por não reconhecer a influência de fatores morais em sua produção, influência essa que em em certos casos é determinante.

4. PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA ESPÍRITA

Como vimos na Seção 1, uma ciência autêntica deve envolver um programa de pesquisa, que auxilie o seu progresso. Com a lucidez científica que lhe era peculiar, Allan Kardec apontou diretrizes seguras para o desenvolvimento do Espiritismo.

De um lado, temos suas análises que advertem contra os métodos e procedimentos anti-científicos que poderiam embaraçar a marcha do Espiritismo. Nas duas seções precedentes enumeramos alguns dos mais importantes deles; Kardec percorreu-os todos, e ainda outros, oferecendo sólida fundamentação às suas críticas.[7]

De outro lado, Kardec legou-nos investigações paradigmáticas sobre os tópicos mais fundamentais da ciência espírita, que serviram de modelo pra os pesquisadores que vieram após ele, e que devem continuar desempenhando essa tarefa nas pesquisas futuras.

Simplificadamente, poderíamos classificar assim as áreas principais de investigação espírita:
Evolução do espírito: o elemento espiritual dos seres dos reinos inferiores; origem dos espíritos humanos; encarnação e reencarnação pluralidade dos mundos habitados.
O mundo espiritual.
Interação espírito-corpo: perispírito, efeitos psicossomáticos, mediunidade.
Implicações morais (uma área científica e filosófica): livre-arbítrio, lei de causa e efeito.
Note-se que não icluímos o tópico "comprovação da existência do espírito". A razão é evidente: trata-se de uma questão já resolvida, na qual não devem as investigações estacionar. Foi uma etapa preliminar, e quem não a percorreu não pode, em boa lógica, pretender-se espírita, ou estar realizando pesquisas espíritas. É de lamentar que tal fato nem sempre seja percebido ou compreendido por pessoas que militam dentro das próprias fileiras espíritas. Os espíritas, para quem a existência do espírito é uma realidade insofismável, por a havermos constatado através de observações e argumentos racionais, devemos deixar àqueles que ainda não a reconheceram a tarefa de prová-la uma vez mais, pela maneira que bem entendam. Mas não devemos empenhar nossos esforços em uma investigação redundante, e que deporia contra as nossas próprias convicções.[8]

Três outros aspectos importantes no desenvolvimento do Espiritismo foram enfatizados por Kardec.

No item VII da Introdução de O Livro dos Espíritos, Kardec afirma que "o Espiritismo não é da alçada da ciência". Evidentemente, trata-se aqui das ciências acadêmicas, ou seja, da Física, da Química e da Biologia. O argumento para tal assertiva baseia-se nas peculiaridades do objeto de estudo e métodos do Espiritismo e das referidas ciências, assunto este tratado na Seção 2, acima. Vale a pena reproduzir aqui, por sua propriedade, o arrazoado que, no texto, antecede a assertiva em questão:

As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente. Os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê- las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A ciência propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso, e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.

As relações entre o Espiritismo e as ciências ordinárias são, antes, de complementaridade, como também notou Kardec. No parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese, lemos a seguinte frase, ao final de uma extensa argumentação: "O Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente".

O segundo aspecto importante a ser notado liga-se parcialmente ao precedente: Kardec observa que não apenas existe uma relativa autonomia entre o Espiritismo e as ciências ordinárias como também os cientistas das academias não estão, pelo simples fato de serem cientistas, mais capacitados do que as demais pessoas para se pronunciar nas questões relativas ao Espiritismo. O assunto é abordado, entre outros lugares, em uma das respostas ao Céptico de O que é o Espiritismo (Cap. I, Segundo diálogo, seção "Oposição da ciência"). Vejamos estes trechos significativos:

Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora de sua competência. Se quiserdes edificar uma casa, confiareis esse trabalho a um músico? Se estiverdes enfermo, far-vos-eis tratar por um arquiteto? Se estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino? Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia, alguém irá pedir a solução a um químico ou a um astrônomo? Não cada um em sua especialidade. (...)

A ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já o fez com tantos outros. (...)

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão pronunciar-se nesta questão ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

Kardec lembra aqui que cada um é competente em sua especialidade, que alguém que haja se especializado no estudo de determinada ordem de fenômenos materiais (um físico ou um biólogo, por exemplo), não adquire, por esse simples fato, competência para se pronunciar sobre uma ordem de fenômenos completamente diferentes, a menos, obviamente, que essa pessoa tenha se dedicado séria e longamente ao seu estudo. Não devemos, pois, cair no erro freqüente hoje em dia de atribuir aos cientistas das academias uma superioridade que eles de fato não possuem na avaliação das pesquisas espíritas.

Por fim, Kardec tomou um extremo cuidado em preservar, e recomendar a preservação, da coerência e integridade da ciência espírita, pela não-intromissão em sua estrutura teórico-conceitual de elementos heterogêneos, oriundos de outros programas de pesquisa. Kardec dotou o Espiritismo de um arsenal conceitual-nomológico próprio, e qualquer desenvolvimento da teoria espírita deve fazer-se recorrendo-se aos seus elementos, ou, se algum acréscimo se fizer necessário, o elemento adicionado não pode conflitar com as leis básicas bem estabelecidas do Espiritismo. Notemos que precauções semelhantes são tomadas na evolução das ciências ordinárias. No caso do Espiritismo, é admirável que ao propor o referido corpo de conceitos e leis, Kardec teve a lucidez de não admitir elementos demasiadamente vulneráveis às transformações futuras das ciências. É assim que o Espiritismo é uma teoria fenomenológica, pelo menos em seus fundamentos. Kardec não se aventurou, por exemplo, a formular modelos para o perispírito, ou explicações técnicas para os fenômenos mediúnicos em termos de conceitos e princípios vulneráveis das ciências de seu tempo. Retrospectivamente, vemos agora que isso providencialmente preservou o Espiritismo das reviravoltas profundas ocorridas nas ciências, durante as primeiras décadas de nosso século. Espelhando-nos na atitude prudente de Kardec, não devemos, por nossa vez, procurar fazer o que ele não fez, e prematuramente associar o Espiritismo às teorias científicas contemporâneas. A progressividade do Espiritismo, uma de suas características essenciais, dado que é uma ciência que se apoia em fatos, não significa a absorção irrestrita de qualquer teoria que apareça. Essa advertência foi claramente exposta no parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese (grifamos):

Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que seja, desde que hajam atingido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que se suicidaria.

Não poderíamos encerrar estes apontamentos sem mencionar um ponto de crucial importância, sobre o qual Kardec não se cansava de insistir: O objetivo essencial do Espiritismo é tornar melhor o homem, convencendo- o, através dos fatos e da razão, de que somente o comportamento evangélico lhe assegurará um porvir feliz. E é nessa tarefa de esclarecimento que a ciência espírita é chamada a desempenhar a sua mais importante tarefa, conforme lemos nos comentários que Kardec tece às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos:

[...] A missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos, por esse meio a sorte inevitável que nos está reservada, de acordo como os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite, e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.

REFERÊNCIAS

BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.
CHAGAS, A. P. "O que é a ciência?", Reformador, março de 1984, pp. 80-83 e 93-95.
-----------. "As provas científicas", Reformador, agosto de 1987, pp. 232-233.
CHIBENI, S. S. "Espiritismo e ciência", Reformador, maio de 1984, pp. 144-147 e 157-159.
-----------. "Os fundamentos da ética espírita", Reformador, junho de 1985, pp. 166-169.
-----------. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d.
----------. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 43ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
----------. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975.
----------. O que é o Espiritismo. S. trad., 25ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
----------. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d.
----------. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
----------. Oeuvres Posthumes. Paris, Dervy-Livres, 1978.
----------. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

Notas de Rodapé

1 Em nosso artigo "Espiritismo e ciência" abordamos de modo mais extenso o aspecto ciêntífico do Espiritismo, à luz da moderna Filosofia da Ciência. Retomamos o assunto no trabalho mais abrangente e menos tecnico "A excelência metodológica do Espiritismo", que contém também uma análise do aspecto religioso do Espiritismo. Em "Os fundamentos da ética espírita" examinamos com algum detalhe as implicações morais da ciência espírita. Para o aspecto científico do Espiritismo, recomendamos ainda a leitura dos artigos "O que é a ciência" e "As provas científicas", de Aécio Pereira Chagas, e "Pesquisas e métodos", de Juvanir Borges de Souza. As referências completas desses artigos, todos publicados em Reformador, encontram-se na lista bibliográfica, aposta no final deste artigo.
2 Para um tratamento desse ponto, ver a Seção 3 de nosso "A exelência metodológica do Espiritismo".
3 Para um tratamento mais extenso desse tópico, ver nossos artigos já referidos.
4 Por exemplo, o ponto luminoso que vemos diariamente no céu poderia ser uma alucinação coletiva, ou a visita do parente pode não ter passado de um sonho, e a caixa de bombons pode coincidentemente ter sido trazida por um promotor de vendas ousado que por acaso tinha uma chave que serviu em nossa porta.
5 Oeuvres Posthumes, item "A minha iniciação no Espiritismo". Nesta e nas demais citações de obras de Kardec, traduzimos diretamente a partir das edições francesas indicadas na lista de referências bibliográficas, aproveitando, em grande parte, as traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira.
6 Le Livre des Esprits, Introdução, Seção XIII.
7 Esses estudos de Kardec são comentados em nosso artigo "A excelência metodológica do Espiritismo", especialmente em sua seção 4.
8 Para esse ponto, ver também o artigo "As provas científicas", de Aécio P. Chagas.

(Artigo publicado na Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, pp. 45-52.)


lLeitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
AS RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A “CIÊNCIA OFICIAL”
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A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

AS RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS


Questões acerca da natureza do Espiritismo - V

Silvio Seno Chibeni

Este artigo examina brevemente alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas, destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.[1]

Questão:

Na época do surgimento do Espiritismo alguém que se dedicasse à pesquisa dos fenômenos mediúnicos e não se inclinasse a considerá-los como fantasias ou fraudes arriscava-se a cair em descrédito nos meios científicos e acadêmicos. Houve alguma mudança nessa postura? Ainda existe antagonismo entre ciência e espiritualismo? A ciência é necessariamente materialista?

Resposta:

Existe, como está implícito nas considerações feitas no artigo precedente, um certo grau de conservadorismo na “ciência-comunidade”, e as análises filosóficas contemporâneas reconhecem aí um requisito importante de uma ciência madura. A compreensão desse ponto paradoxal requer estudos especializados. Em alguns artigos sobre a ciência espírita (ver referências bibliográficas) procurei indicar o papel daquilo que o filósofo da ciência Imre Lakatos chamou de “heurística negativa” de uma ciência. Trata-se, de forma simplificada, da decisão metodológica explícita ou tácita dos membros de uma comunidade científica de preservar, tanto quanto possível, o núcleo de leis fundamentais de seu programa científico de pesquisa.

Lakatos argumentou convincentemente que sem essa política conservadora moderada e racional o desenvolvimento científico ficaria inviabilizado. É somente quando condições excepcionais se reúnem, envolvendo o fracasso sistemático do programa de pesquisa em resolver problemas teóricos e de ajuste empírico que o núcleo do programa é revisto ou rejeitado. Na atividade normal da ciência os ajustes e desenvolvimentos teóricos se dão em partes menos centrais da malha teórica, que Lakatos denominou de “cinturão protetor” de leis auxiliares.

Menciono isso para ressaltar que a relutância da comunidade científica em aceitar uma nova teoria sobre o ser humano, como é o caso do Espiritismo, é natural e esperada. Cumpre notar que o Espiritismo trata de coisas que escapam ao domínio das ciências ordinárias, cujo objeto de estudo são os fenômenos e leis pertinentes à matéria. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse ponto.

Um elemento central na análise da ciência é a distinção entre teoria, método e objeto de estudo. As diversas ciências distinguem-se entre si, em primeira instância, por seus objetos de estudo, os conjuntos de fenômenos que investigam. Fenômenos mecânicos, elétricos, magnéticos e nucleares, por exemplo, são do escopo da física; a formação e dissociação de moléculas constitui objeto de estudo da química; a vida, em muitas de suas expressões, é examinada pela biologia. Existem, naturalmente, pontos de contato, interseções e hibridações entre as ciências, mas isso não dilui a distinção fundamental entre elas.

Ora, dada a diversidade de objetos de estudo, haverá diferenças expressivas nos métodos e características teóricas das várias ciências. A identificação de elementos comuns entre elas é tarefa mais difícil do que à primeira vista parece, constituindo um tópico dos mais importantes da área da filosofia denominada filosofia da ciência.

Nos artigos mencionados procurei apresentar alguns traços importantes dessa disciplina, em conexão com o exame do aspecto científico do Espiritismo. Uma tese central neles defendida é que o Espiritismo, tal como estruturado por Allan Kardec, exibe todas as características de uma genuína ciência, à luz da filosofia da ciência contemporânea. Não se deve, porém, confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência com a suposição falsa de que ele é parte das ciências acadêmicas, que tratam de fenômenos referentes à matéria.

No parágrafo 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos Kardec discorre lucidamente sobre o assunto, de uma perspectiva filosófica bem avançada para sua época, concluindo seguramente que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, isto é, das ciências acadêmicas. Retoma essa análise de forma mais extensa em O que é o Espiritismo, onde encontramos, por exemplo, este interessante raciocínio no capítulo I, segundo diálogo, seção “Oposição da ciência”:

As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.

Os do Espiritismo têm como agentes inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.

A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

No primeiro capítulo de A Gênese, parágrafo 16, Kardec salienta, a esse propósito, que estudando domínios diferentes e complementares “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.

A autonomia do Espiritismo com relação às ciências ordinárias parece estar suficientemente demonstrada (não aqui, neste breve resumo, evidentemente, mas nos extensos estudos feitos por Kardec e outros pensadores espíritas). Preocupa a incompleta percepção desse ponto por muitos espíritas em nossos dias, aqueles que pretendem, como dizem, “trazer a ciência para o Espiritismo”. Não se dão conta adequadamente de que o Espiritismo já constitui por si uma ciência independente e vigorosa, e que, ademais, a peculiaridade de seu objeto de estudo torna fora de propósito qualquer hibridação fundamental com as ciências da matéria. Há, é claro, áreas periféricas de contato, como por exemplo, o estudo das enfermidades psicossomáticas, onde pode e deve haver contribuições mútuas.

Não se deve confundir o que estou dizendo com as justificadas críticas já avançadas por Kardec a pessoas que, em nome da ciência ou não, julgam o Espiritismo sem haver examinado atentamente todos os fatos de que trata, bem como sua estrutura teórica. Isso é inadmissível filosófica e cientificamente. Tal atitude infelizmente continua sendo comum, inclusive nos meios acadêmicos. A especialização que caracteriza a formação científica parece mesmo favorecê-la, com também notou Kardec no referido item de O Livro dos Espíritos:

Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.

Na pergunta formulada alude-se também à questão mais geral da posição da ciência acerca do espiritualismo. Conforme em outras palavras ressaltou Aécio Chagas em alguns de seus artigos mencionados na lista de referências, não faz muito sentido discutir se as ciências acadêmicas, enquanto conhecimento, são materialistas ou não. Foram concebidas expressamente para descrever e explicar exclusivamente os fenômenos materiais, não tendo nada a dizer sobre a disputa materialismo versus espiritualismo, que gira em torno da questão da existência de algo além da matéria.

Se se pergunta agora se a comunidade científica acadêmica é materialista ou não, a questão faz sentido, mas só admite resposta estatística, visto que a convicção pessoal de cada um de seus integrantes acerca desse problema filosófico não constitui critério necessário ou suficiente para a sua admissão na profissão. Parece certo que significativa parcela dos cientistas atuais é materialista, mas isso talvez apenas reflita o padrão geral de crença das sociedades nas quais mais prosperam as ciências, como sugere o Prof. Chagas.

Seja como for, nós espíritas não devemos nos inquietar com isso, como advertiu Kardec ainda no mesmo parágrafo de O Livro dos Espíritos, de onde extrairei mais este trecho, para concluir:

O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].

Quando as crenças espíritas se houverem difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se dará com o que tem acontecido com todas as idéias novas que hão encontrado oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.

* * *
No próximo artigo será analisado brevemente o estatuto científico de algumas abordagens recentes de investigação de fenômenos espíritas.
Referências:

(Alguns destes artigos encontram-se disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.
––. “O Espiritismo na Academia?”, Revista Internacional de Espiritismo, fevereiro de 1994, p. 20-22 e março de 1994, p. 41-43 .
––. “A ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
––. Ainda sobre as relações entre as ciências e o Espiritismo. (Submetido para publicação.)
CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.
––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. (O que é o Espiritismo. s. trad. 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
––. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme.Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento desse material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.


Artigo publicado em Reformador, novembro de 1999, pp. 344-346.


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