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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

CIÊNCIA ESPÍRITA


SILVIO SENO CHIBENI

Le Spiritisme est une science qui traite de la nature, de l'origine et de la destinée des Esprits, et de leur rapports avec le monde corporel.

Allan Kardec

1. INTRODUÇÃO: CIÊNCIA E PSEUDO-CIÊNCIA

Com a frase em epígrafe, que figura no Preâmbulo do importante livro O que é o Espiritismo, Allan Kardec indica, de modo sumário porém preciso, o objeto de estudo do Espiritismo, enquanto ciência. Quando a escreveu, em 1859, Kardec já havia, ao longo de alguns anos de investigações teóricas e experimentais intensas, desenvolvido suficientemente o Espiritismo para poder afirmar sem hesitação que se tratava de uma nova disciplina científica. Como é bem sabido, os desdobramentos filosóficos e morais que essa disciplina comporta foram igualmente objeto de grande atenção por parte de Kardec. No presente trabalho centralizaremos nossa análise no aspecto científico do Espiritismo, atendendo à natureza desta seção da Revista Internacional de Espiritismo.[1]

A questão de que características tornam uma disciplina merecedora do qualificativo científica tem ocupado lugar proeminente nos estudos dos filósofos da ciência. Notadamente nas últimas três décadas, progressos significativos foram realizados no sentido de se lhe oferecer uma resposta satisfatória. Um dos elementos mais importantes nesse aperfeiçoamento de nossa concepção de ciência foi a maior atenção que os filósofos da ciência passaram a atribuir à análise detalhada da história da ciência, dentro de uma abordagem historiográfica renovada.

Reconhece-se hoje entre os especialistas que a concepção comum de ciência padece de defeitos sérios, por não resistir nem a variados argumentos filosóficos recentemente levantados, nem ao confronto com a descrição da gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da Física, da Química e da Biologia. Os elementos problemáticos dessa visão ordinária de ciência, esposada tanto pelo homem comum como por expressiva parcela dos próprios cientistas, compareciam igualmente nas concepções que os filósofos defendiam até a primeira metade de nosso século. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida como Positivismo Lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930. Por motivos que não cabe aqui examinar, essa posição filosófica exerceu entranhada influência sobre os cientistas, e essa influência perdura até nossos dias, a despeito daquela concepção haver sido abandonada há muito pelos filósofos.

Esses fatos são importantes em nossa análise das linhas de pesquisa que pretendem competir com o Espiritismo, pois elas começaram a surgir precisamente quando o Positivismo Lógico fornecia os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como se percebeu depois, aquelas linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso conhecimento no domínio do espírito.

Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores da Parapsicologia e demais linhas de investigação que surgiram após ela a não somente empenharem infrutiferamente os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima ciência do espírito, surgida ainda no século XIX, a saber, o Espiritismo.

Em trabalhos anteriores (ver Nota 1, acima) procuramos fornecer alguns detalhes dessa situação, que embasam as afirmações precedentes. Essa tarefa pressupõe, naturalmente, a comparação dos fundamentos, estrutura e métodos do Espiritismo com aqueles que as investigações recentes em Filosofia da Ciência mostraram caracterizar as disciplinas paradigmaticamente científicas, como a Física, a Química e a Biologia. Não há espaço para reproduzir aqui as análises que empreendemos naqueles trabalhos. Para fins de completude, porém, indicaremos a seguir, de forma simplificada, alguns de seus pontos principais.

Grosso modo, a visão comum de ciência envolve a assunção de que uma ciência inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos seguros e neutros para obter as teorias científicas, que seriam descrições objetivas da realidade investigada.

O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da atividade científica não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis. Observação e teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas a imaginação criadora do homem desempenha um papel essencial na gênese das teorias científicas.

A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das conquistas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, simplificadamente, de um núcleo teórico principal, formado por hipóteses fundamentais. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento futuro. De um lado, há as regras "negativas", que estipulam que nesse desenvolvimento os princípios básicos do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidas inalteradas. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares; regras "positivas" sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas.

Ao contrário do que se supõe na visão comum de ciência, não há restrições sobre a natureza das leis de uma teoria científica, que podem inclusive ser de caráter predominantemente metafísico. A restrição fundamental é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. O exame das teorias científicas maduras e dos padrões avaliativos adotados pelos cientistas indica ainda que algumas características devem necessariamente estar presentes em qualquer boa teoria científica. Inicialmente, ela deve ser consistente. Deve ser abrangente, explicando um grande número de fatos. Deve, por fim, apresentar as virtudes estéticas de unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há ainda o vínculo externo de que uma teoria não deve conflitar com as demais teorias científicas bem estabelecidas que tratam de domínios de fenômenos complementares (por exemplo, uma teoria biológica não deve pressupor leis químicas e físicas que contrariem as leis bem assentadas da Química e da Física).
2. O ESPIRITISMO COMO CIÊNCIA

A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos esses requisitos de uma ciência genuína. Em artigo anterior ("A excelência metodológica do Espiritismo") procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec admiravelmente antecipou- se às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, e compreendeu essa realidade. Sua visão de ciência, exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde à visão moderna e justa mencionada acima. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que possibilitou o surgimento de uma verdadeira ciência do espírito.

O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos. O exame dessa obra revela sua consistência e seu alto grau de coesão, uma notável concatenação das diversas leis, a amplitude de seu escopo, e o perfeito casamento da teoria com os fatos. Ademais, ali estão implícitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas. Parte significativa desses desenvolvimentos foi, como se sabe, levada a cabo pelo próprio Kardec, e se acham exarados nas demais obras que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência, o desenvolvimento experimental e teórico do Espiritismo prosssegue até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.

Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da Física, quer da Química ou da Biologia. É de crucial importância notar, como o fez Kardec,[2] que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com as referidas ciências, do mesmo modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.

A percepção dessa distinção evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm ameaçado até mesmo o próprio Movimento Espírita. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste em determinadas investigações envolvendo experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens de uso nos laboratórios de Física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados à Física. Assume-se, assim, que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre incompreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade a essas investigações.

Dada a relevância da elucidação dos sérios enganos envolvidos em semelhantes alegações, nesta Seção e na seguinte nos deteremos um pouco mais sobre elas.[3]

A observação mais importante é a de que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação cabal desse princípio se dá através dos fenômenos a que denominou "de efeitos intelectuais", quais sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita isentamente sobre fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito de modo inequívoco as tentativas de "explicações" alternativas que se têm procurado oferecer surgirão como ridículas.

Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo. Neste último caso, o "grau teórico" (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da observação empírica direta. Em tal caso, o caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante indireto e tortuoso, passando por uma série de teorias auxilires, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser asseridos fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos diferentes; a história da Física e da Química tem ilustrado a vulnerabilidade de suas teorias.

No caso do princípio espírita em questão (bem como de vários outros dos princípios básicos do Espiritismo), a situação é bastante diversa. Trata- se de um princípio pertencente à classe de princípios a que os filósofos denominam "fenomenológicos", que estão na base do edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de que o Sol existe, de que o fogo queima e a cicuta envenena, a de que determinado familiar veio nos visitar no dia tal e nos deixou uma caixa de bombons, etc. Nestes casos, embora explicações alternativas sejam em princípio possíveis,[4] elas são tão inverossímeis que não merecem o assentimento de nenhum ser racional. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exempo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões e expressam pensamentos peculires e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os abundantes e variados casos de psicografia de que todos somos testemunha. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie (como por exemplo os que nos têm oferecido a extraordinária mediunidade de Chico Xavier) é suficiente para eliminar qualquer dúvida.

Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, os casos de vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apoia-se também, em virtude de oferecer-lhes explicações científicas, em uma multidão de fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicosomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.

Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. Referindo-se às suas impressões diante das realidades novas que se lhe iam descortinando através de suas cuidadosas observações e raciocínios, Kardec assim se expressou: "Logo compreendi a gravidade da exploração que ia empreender; entrevi naqueles fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução do que eu havia procurado durante toda a minha vida; era, numa palavra, toda uma revolução nas idéias e nas crenças (...)".[5] "O estudo do Espiritismo é imenso", disse Kardec em outra passagem; "interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós." [6]
3. PSEUDO-CIÊNCIAS DO ESPÍRITO

Na Seção precedente iniciamos a enumeração dos métodos e procedimentos anti-científicos que caracterizam as linhas de pesquisa alternativas do espírito, indicando que a natureza de seu objeto de estudo é tal que o recurso a aparelhos e a métodos quantitativos em geral é dispensável e mesmo arrriscado, pelos enganos a que pode levar. Isto vale pelo menos quanto ao estabelecimento dos princípios fundamentais da ciência do espírito, concebendo-se que em um futuro distante o detalhamento de alguns pontos mais técnicos, como por exemplo os relativos às leis dos fluidos, possa requerer uma integração mais estreita com a física e a química mais refinadas de então.

Prosseguiremos agora nossa enumeração, começando por um tópico ligado ao que expusemos no final da Seção precedente. Referimo-nos à abrangência do Espiritismo. O escopo dessa ciência é incomparavelmente mais amplo do que o de todas as teorias alternativas. Uma inspeção destas últimas mostra que consideram apenas uns poucos fenômenos isolados, sem levar em consideração uma multidão de outros, igualmente relevantes.

Esse desprezo de fatos importantes resulta essencialmente de duas fontes: 1) preconceitos e interesses diversos; e 2) falta de um corpo teórico que norteie a pesquisa experimental. Quanto ao primeiro fator, não há o que comentar. Quanto ao segundo, notemos que está intimamente ligado à falsa concepção de ciência adotada, que imagina ser possível se fazer ciência sem teoria.

Outra deficiência séria que apresentam esses sistemas não-espíritas é que mesmo para os grupos reduzidos de fenômenos que levam em conta, as explicações oferecidas pecam pela falta de unidade e organicidade, recorrendo a leis e princípios desconectados.

Além disso, tais explicações em geral falham em satisfazer um outro requisito fundamental de uma genuina explicação científica: a simplicidade. As explicações são em geral ainda mais inexplicáveis que os fatos que se propõem a explicar.

Encontramos ainda explicações puramente verbais, ou seja, que não apresentam qualquer conteúdo, limitando- se ao uso de termos técnicos, buscados nas diversas ciências ou criados a esmo, procurando-se com isso conferir ares científicos à suposta explicação. Muitas pessoas não familarizadas com a ciência deixam-se fascinar por tais artifícios, não percebendo que qualquer explicação satisfatória deve caracterizar-se pela clareza e inteligibilidade (como nos dá magnífico exemplo o Espiritismo) e que o recurso à linguagem técnica só é legítimo dentro do contexto teórico que lhe é próprio.

Outro tipo freqüente de deficiência que notamos nos sistemas que pretendem competir com o Espiritismo refere-se ao recurso a conceitos e teorias científicas obsoletos, ou o uso não-profissional das teorias contemporâneas. As ciências, principalmente a Física e a Química, passaram por transformações radicais em nosso século as teorias atuais envolvem conceitos extremamente abstratos, distantes da intuição do senso comum, além de técnicas matemáticas de grande complexidade. Em seus aspectos essenciais, essas teorias não são acessíveis ao leigo, que, quando instruído, em geral ainda tem para si a imagem do mundo fornecida pelas teorias do século passado. Os muitos livros de popularização da ciência via de regra não resolvem esse problema; mesmo quando são escritos por profissinais (o que é raro), inevitavelmente têm de recorrer a simplificações drásticas, que resultam em distorções sérias na imagem que oferecem das teorias expostas. Como resultado, a virtual totalidade das pessoas que têm se aventurado a estabelecer vínculos diretos entre os fenômenos espíritas e as teorias da Física cai, ou no recurso a teorias superadas, ou em confusões que mostram-se ridículas aos olhos dos cientistas com formação profissional. Essas pessoas acabam pois involuntariamente prestando um desserviço à causa da investigação científica do espírito.

Mais um fator importante que entrava as linhas de pesquisa não-espíritas é o sistemático desprezo pelas contribuições anteriormente efetuadas por outros pesquisadores. Cada um quer começar tudo de novo, e criar seu próprio sistema. Se a dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o avanço do conhecimento. Se nas ciências acadêmicas se tivesse adotado semelhante atitude, elas estariam ainda em seus primórdios.
Por fim, lembramos ainda que muitas das tentativas não-espíritas de estudo dos fenômenos espíritas fracassam por não reconhecer a influência de fatores morais em sua produção, influência essa que em em certos casos é determinante.

4. PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA ESPÍRITA

Como vimos na Seção 1, uma ciência autêntica deve envolver um programa de pesquisa, que auxilie o seu progresso. Com a lucidez científica que lhe era peculiar, Allan Kardec apontou diretrizes seguras para o desenvolvimento do Espiritismo.

De um lado, temos suas análises que advertem contra os métodos e procedimentos anti-científicos que poderiam embaraçar a marcha do Espiritismo. Nas duas seções precedentes enumeramos alguns dos mais importantes deles; Kardec percorreu-os todos, e ainda outros, oferecendo sólida fundamentação às suas críticas.[7]

De outro lado, Kardec legou-nos investigações paradigmáticas sobre os tópicos mais fundamentais da ciência espírita, que serviram de modelo pra os pesquisadores que vieram após ele, e que devem continuar desempenhando essa tarefa nas pesquisas futuras.

Simplificadamente, poderíamos classificar assim as áreas principais de investigação espírita:
Evolução do espírito: o elemento espiritual dos seres dos reinos inferiores; origem dos espíritos humanos; encarnação e reencarnação pluralidade dos mundos habitados.
O mundo espiritual.
Interação espírito-corpo: perispírito, efeitos psicossomáticos, mediunidade.
Implicações morais (uma área científica e filosófica): livre-arbítrio, lei de causa e efeito.
Note-se que não icluímos o tópico "comprovação da existência do espírito". A razão é evidente: trata-se de uma questão já resolvida, na qual não devem as investigações estacionar. Foi uma etapa preliminar, e quem não a percorreu não pode, em boa lógica, pretender-se espírita, ou estar realizando pesquisas espíritas. É de lamentar que tal fato nem sempre seja percebido ou compreendido por pessoas que militam dentro das próprias fileiras espíritas. Os espíritas, para quem a existência do espírito é uma realidade insofismável, por a havermos constatado através de observações e argumentos racionais, devemos deixar àqueles que ainda não a reconheceram a tarefa de prová-la uma vez mais, pela maneira que bem entendam. Mas não devemos empenhar nossos esforços em uma investigação redundante, e que deporia contra as nossas próprias convicções.[8]

Três outros aspectos importantes no desenvolvimento do Espiritismo foram enfatizados por Kardec.

No item VII da Introdução de O Livro dos Espíritos, Kardec afirma que "o Espiritismo não é da alçada da ciência". Evidentemente, trata-se aqui das ciências acadêmicas, ou seja, da Física, da Química e da Biologia. O argumento para tal assertiva baseia-se nas peculiaridades do objeto de estudo e métodos do Espiritismo e das referidas ciências, assunto este tratado na Seção 2, acima. Vale a pena reproduzir aqui, por sua propriedade, o arrazoado que, no texto, antecede a assertiva em questão:

As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente. Os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê- las aos processos comuns de investigação é estabelecer analogias que não existem. A ciência propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso, e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.

As relações entre o Espiritismo e as ciências ordinárias são, antes, de complementaridade, como também notou Kardec. No parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese, lemos a seguinte frase, ao final de uma extensa argumentação: "O Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente".

O segundo aspecto importante a ser notado liga-se parcialmente ao precedente: Kardec observa que não apenas existe uma relativa autonomia entre o Espiritismo e as ciências ordinárias como também os cientistas das academias não estão, pelo simples fato de serem cientistas, mais capacitados do que as demais pessoas para se pronunciar nas questões relativas ao Espiritismo. O assunto é abordado, entre outros lugares, em uma das respostas ao Céptico de O que é o Espiritismo (Cap. I, Segundo diálogo, seção "Oposição da ciência"). Vejamos estes trechos significativos:

Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora de sua competência. Se quiserdes edificar uma casa, confiareis esse trabalho a um músico? Se estiverdes enfermo, far-vos-eis tratar por um arquiteto? Se estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino? Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia, alguém irá pedir a solução a um químico ou a um astrônomo? Não cada um em sua especialidade. (...)

A ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já o fez com tantos outros. (...)

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão pronunciar-se nesta questão ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

Kardec lembra aqui que cada um é competente em sua especialidade, que alguém que haja se especializado no estudo de determinada ordem de fenômenos materiais (um físico ou um biólogo, por exemplo), não adquire, por esse simples fato, competência para se pronunciar sobre uma ordem de fenômenos completamente diferentes, a menos, obviamente, que essa pessoa tenha se dedicado séria e longamente ao seu estudo. Não devemos, pois, cair no erro freqüente hoje em dia de atribuir aos cientistas das academias uma superioridade que eles de fato não possuem na avaliação das pesquisas espíritas.

Por fim, Kardec tomou um extremo cuidado em preservar, e recomendar a preservação, da coerência e integridade da ciência espírita, pela não-intromissão em sua estrutura teórico-conceitual de elementos heterogêneos, oriundos de outros programas de pesquisa. Kardec dotou o Espiritismo de um arsenal conceitual-nomológico próprio, e qualquer desenvolvimento da teoria espírita deve fazer-se recorrendo-se aos seus elementos, ou, se algum acréscimo se fizer necessário, o elemento adicionado não pode conflitar com as leis básicas bem estabelecidas do Espiritismo. Notemos que precauções semelhantes são tomadas na evolução das ciências ordinárias. No caso do Espiritismo, é admirável que ao propor o referido corpo de conceitos e leis, Kardec teve a lucidez de não admitir elementos demasiadamente vulneráveis às transformações futuras das ciências. É assim que o Espiritismo é uma teoria fenomenológica, pelo menos em seus fundamentos. Kardec não se aventurou, por exemplo, a formular modelos para o perispírito, ou explicações técnicas para os fenômenos mediúnicos em termos de conceitos e princípios vulneráveis das ciências de seu tempo. Retrospectivamente, vemos agora que isso providencialmente preservou o Espiritismo das reviravoltas profundas ocorridas nas ciências, durante as primeiras décadas de nosso século. Espelhando-nos na atitude prudente de Kardec, não devemos, por nossa vez, procurar fazer o que ele não fez, e prematuramente associar o Espiritismo às teorias científicas contemporâneas. A progressividade do Espiritismo, uma de suas características essenciais, dado que é uma ciência que se apoia em fatos, não significa a absorção irrestrita de qualquer teoria que apareça. Essa advertência foi claramente exposta no parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese (grifamos):

Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que seja, desde que hajam atingido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que se suicidaria.

Não poderíamos encerrar estes apontamentos sem mencionar um ponto de crucial importância, sobre o qual Kardec não se cansava de insistir: O objetivo essencial do Espiritismo é tornar melhor o homem, convencendo- o, através dos fatos e da razão, de que somente o comportamento evangélico lhe assegurará um porvir feliz. E é nessa tarefa de esclarecimento que a ciência espírita é chamada a desempenhar a sua mais importante tarefa, conforme lemos nos comentários que Kardec tece às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos:

[...] A missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos, por esse meio a sorte inevitável que nos está reservada, de acordo como os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite, e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.

REFERÊNCIAS

BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.
CHAGAS, A. P. "O que é a ciência?", Reformador, março de 1984, pp. 80-83 e 93-95.
-----------. "As provas científicas", Reformador, agosto de 1987, pp. 232-233.
CHIBENI, S. S. "Espiritismo e ciência", Reformador, maio de 1984, pp. 144-147 e 157-159.
-----------. "Os fundamentos da ética espírita", Reformador, junho de 1985, pp. 166-169.
-----------. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d.
----------. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 43ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
----------. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975.
----------. O que é o Espiritismo. S. trad., 25ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
----------. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d.
----------. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
----------. Oeuvres Posthumes. Paris, Dervy-Livres, 1978.
----------. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

Notas de Rodapé

1 Em nosso artigo "Espiritismo e ciência" abordamos de modo mais extenso o aspecto ciêntífico do Espiritismo, à luz da moderna Filosofia da Ciência. Retomamos o assunto no trabalho mais abrangente e menos tecnico "A excelência metodológica do Espiritismo", que contém também uma análise do aspecto religioso do Espiritismo. Em "Os fundamentos da ética espírita" examinamos com algum detalhe as implicações morais da ciência espírita. Para o aspecto científico do Espiritismo, recomendamos ainda a leitura dos artigos "O que é a ciência" e "As provas científicas", de Aécio Pereira Chagas, e "Pesquisas e métodos", de Juvanir Borges de Souza. As referências completas desses artigos, todos publicados em Reformador, encontram-se na lista bibliográfica, aposta no final deste artigo.
2 Para um tratamento desse ponto, ver a Seção 3 de nosso "A exelência metodológica do Espiritismo".
3 Para um tratamento mais extenso desse tópico, ver nossos artigos já referidos.
4 Por exemplo, o ponto luminoso que vemos diariamente no céu poderia ser uma alucinação coletiva, ou a visita do parente pode não ter passado de um sonho, e a caixa de bombons pode coincidentemente ter sido trazida por um promotor de vendas ousado que por acaso tinha uma chave que serviu em nossa porta.
5 Oeuvres Posthumes, item "A minha iniciação no Espiritismo". Nesta e nas demais citações de obras de Kardec, traduzimos diretamente a partir das edições francesas indicadas na lista de referências bibliográficas, aproveitando, em grande parte, as traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira.
6 Le Livre des Esprits, Introdução, Seção XIII.
7 Esses estudos de Kardec são comentados em nosso artigo "A excelência metodológica do Espiritismo", especialmente em sua seção 4.
8 Para esse ponto, ver também o artigo "As provas científicas", de Aécio P. Chagas.

(Artigo publicado na Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, pp. 45-52.)


lLeitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
AS RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A “CIÊNCIA OFICIAL”
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POLISSEMIAS NO ESPIRITISMO
AS ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR QUE ALLAN KARDEC?
O PARADIGMA ESPÍRITA
A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

LEON DENIS, OS FLUIDOS. O MAGNETISMO


O mundo dos fluidos, que se entrevê além do estado radiante, reserva à Ciência muitas surpresas e descobertas. Inumeráveis são as variedades de formas que a matéria, tornando-se sutil, pode revestir para as necessidades de uma vida superior.

Muitos observadores já sabem que, além de nossas especulações, além do véu opaco que a nossa espessa constituição ostenta como um nevoeiro em torno de nós, um outro mundo existe, não mais o dos infinitamente pequenos, mas um universo fluídico que nos envolve, completamente povoado de multidões invisíveis.

Seres sobre-humanos, mas não sobrenaturais, vivem perto de nós, testemunhas mudas de nossa existência e só manifestam a sua em determinadas condições, sob a ação de leis naturais, precisas, rigorosas. Importa penetrar o segredo dessas leis, pois, a partir de seu conhecimento decorrerá para o homem a posse de forças consideráveis, cuja utilização prática pode transformar a face da Terra e a ordem das sociedades. É esse o domínio da psicologia experimental, alguns  diriam, das ciências ocultas, ciências velhas como o mundo.

Já falamos dos prodígios efetuados nos lugares sagrados da Índia, do Egito e da Grécia. Não está nos nossos planos aí retornar, mas há uma questão conexa que não poderíamos deixar passar em silêncio, a do magnetismo.

O magnetismo, estudado e praticado em segredo em todas as épocas da História, vulgarizou-se sobretudo desde o fim do século XVIII. As academias de sábios ainda o têm sob suspeita e é sob o nome de hipnotismo que os mestres da Ciência quiseram descobri-lo um século após sua aparição.

“O hipnotismo, disse o Sr. de Rochas,86 até aqui, só estudado oficialmente, é apenas o vestíbulo de um vasto e maravilhoso edifício já explorado, em grande parte, pelos antigos magnetizadores.”

O mal é que os sábios oficiais — quase todos médicos — que se ocupam do magnetismo ou, como eles mesmos dizem, do hipnotismo, geralmente, apenas experimentam com pessoas doentes, com internos de hospitais. A irritação nervosa e as afecções mórbidas dessas pessoas só permitem obter fenômenos incoerentes, incompletos.

Alguns sábios parecem recear que o estudo desses mesmos fenômenos, obtidos em condições normais, não forneça a prova da existência no homem do princípio anímico. É, pelo menos, o que sobressai dos comentários do doutor Charcot, de quem não se negará a competência.

“O hipnotismo, dizia, é um mundo no qual encontra-se, ao lado de fatos palpáveis, materiais, grosseiros, acompanhando sempre a fisiologia, fatos absolutamente extraordinários, inexplicáveis até aqui, que não respondem a nenhuma lei fisiológica e inteiramente estranhas e surpreendentes.
 Ocupo-me dos primeiros e deixo de lado os segundos.”

Assim, os mais célebres médicos confessam que essa questão ainda está para eles cheia de obscuridade. Nas suas investigações, limitam-se a observações superficiais e desdenham os fatos que poderiam conduzi-los diretamente à solução do problema. A Ciência Materialista hesita em aventurar-se no terreno da Psicologia Experimental; ela sente que, ali, se encontraria na presença das forças psíquicas da alma, em uma palavra, a mesma da qual ela negou a existência com tanta obstinação.

Seja como for, o magnetismo, depois de ter sido repelido durante longo tempo pelas corporações sábias, começa sob um outro nome a chamar sua atenção. Mas os resultados seriam de outro modo fecundos se, ao invés de operar sobre histéricos, experimentasse em pessoas sãs e válidas. O sono magnético desenvolve nos indivíduos lúcidos, faculdades novas, um poder de percepção incalculável. O fenômeno mais notável é a visão a grande distância sem o concurso dos olhos. Um sonâmbulo pode orientar-se durante a noite, ler e escrever de olhos fechados, entregar-se aos trabalhos mais delicados e mais complicados.

Outros indivíduos veem no interior do corpo humano, discernem seus males e suas causas, leem o pensamento no cérebro,87 penetram, sem o concurso dos sentidos, nos domínios mais ocultos e até no limiar de um outro mundo. Eles auscultam os mistérios da vida fluídica, entram em contato com os seres invisíveis dos quais falamos, transmitem-nos seus avisos, seus ensinos. Voltaremos, mais tarde, sobre esse último ponto; mas, desde agora, podemos considerar estabelecido o fato que decorre das experiências de Puységur, Deleuze, du Potet e seus inúmeros discípulos: o sono magnético, imobilizando o corpo, anulando os sentidos, restitui a liberdade ao ser psíquico, centuplica-lhe os meios íntimos de percepção e o faz entrar num mundo vedado aos seres corporais.

Esse ser psíquico que, durante o sono, vive, pensa, age fora do corpo, que afirma sua personalidade independente por uma maneira de ver e dos conhecimentos superiores àqueles possuídos no estado de vigília, o que é ele, senão a própria alma, revestida de forma fluídica? Essa alma, que não é apenas uma resultante de forças vitais, do jogo dos órgãos, mas uma causa livre, uma vontade atuante, afastada momentaneamente da sua prisão, planando sobre a Natureza inteira e desfrutando da integridade das suas faculdades inatas? Assim, os fenômenos magnéticos tornam evidentes, não somente a existência da alma, mas também, sua imortalidade; pois se, durante a existência corporal, essa alma se desliga do seu invólucro grosseiro, vive e pensa fora dele, com mais forte razão achará na morte, a plenitude de sua liberdade.

A ciência do magnetismo coloca o homem na posse de maravilhosos recursos. A ação dos fluidos sobre o corpo humano é imensa; suas propriedades são múltiplas, variadas. Numerosos fatos têm provado que, com sua ajuda, pode-se aliviar os sofrimentos mais cruéis. Os grandes missionários não curavam pela imposição das mãos? Aí está todo o segredo dos seus pretensos milagres. Os fluidos, obedecendo a uma vontade poderosa, a um desejo ardente de fazer o bem, penetram em todos os organismos débeis e restituem, gradualmente, o vigor nos fracos, a saúde nos enfermos.

Pode-se objetar que uma legião de charlatães abusa, para explorá-lo, da credulidade e da ignorância do público, gabando-se de um poder magnético imaginário. Esses fatos entristecedores são a consequência inevitável do estado de inferioridade moral da Humanidade. Uma coisa nos consola: a certeza de que não há homem animado de uma simpatia profunda pelos deserdados, de um verdadeiro amor por aqueles que sofrem, que não possa aliviar seus semelhantes através de uma prática sincera e esclarecida do magnetismo.

86 Os Estados Profundos da Hipnose, pelo coronel de Rochas d’Aiglun. (N.A.)
87 “Ele vê (o indivíduo) vibrar as células cerebrais sob a influência do pensamento e as compara às estrelas que se dilatam e se contraem sucessivamente.” (Os Estados Profundos da Hipnose, pelo coronel de Rochas, ex-administrador da Escola Politécnica.)
Desde então o professor Th. Flournoy, da Universidade de Genebra, escrevia: “Basta folhear a literatura médica mais recente para ali encontrar, pela pena de utores insuspeitos de misticismo, exemplos de visão interna. De um lado, psiquiatras franceses acabam de publicar alguns casos de alienados que apresentaram, poucos dias antes do seu fim, uma melhora tão súbita quanto inexplicável, ao mesmo tempo que o pressentimento de sua morte próxima. Do outro lado, o fato de que os sonâmbulos que têm a clara visão de suas vísceras, às vezes, até da sua estrutura íntima; esse fato vem pela primeira vez franquear os limites da Ciência sob o nome de autoscopia interna ou autorrepresentação do organismo; e, por uma divertida ironia da sorte, os padrinhos desse recém-chegado encontram-se entre os que pertencem a uma escola que pretende rejeitar qualquer explicação psicológica desses fatos.” (Arquivos de
Psicologia, agosto de 1903). (N.A.)


 Referencias;

LIVRO;
DEPOIS DA MORTE DE LÉON DENIS CAP. XVII - 3A  EDIÇÃO CELD - RIO DE JANEIRO, 2011 - TRADUÇÃO DE  MARIA LUCIA ALCANTARA DE CARVALHO