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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

AS RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS


Questões acerca da natureza do Espiritismo - V

Silvio Seno Chibeni

Este artigo examina brevemente alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas, destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.[1]

Questão:

Na época do surgimento do Espiritismo alguém que se dedicasse à pesquisa dos fenômenos mediúnicos e não se inclinasse a considerá-los como fantasias ou fraudes arriscava-se a cair em descrédito nos meios científicos e acadêmicos. Houve alguma mudança nessa postura? Ainda existe antagonismo entre ciência e espiritualismo? A ciência é necessariamente materialista?

Resposta:

Existe, como está implícito nas considerações feitas no artigo precedente, um certo grau de conservadorismo na “ciência-comunidade”, e as análises filosóficas contemporâneas reconhecem aí um requisito importante de uma ciência madura. A compreensão desse ponto paradoxal requer estudos especializados. Em alguns artigos sobre a ciência espírita (ver referências bibliográficas) procurei indicar o papel daquilo que o filósofo da ciência Imre Lakatos chamou de “heurística negativa” de uma ciência. Trata-se, de forma simplificada, da decisão metodológica explícita ou tácita dos membros de uma comunidade científica de preservar, tanto quanto possível, o núcleo de leis fundamentais de seu programa científico de pesquisa.

Lakatos argumentou convincentemente que sem essa política conservadora moderada e racional o desenvolvimento científico ficaria inviabilizado. É somente quando condições excepcionais se reúnem, envolvendo o fracasso sistemático do programa de pesquisa em resolver problemas teóricos e de ajuste empírico que o núcleo do programa é revisto ou rejeitado. Na atividade normal da ciência os ajustes e desenvolvimentos teóricos se dão em partes menos centrais da malha teórica, que Lakatos denominou de “cinturão protetor” de leis auxiliares.

Menciono isso para ressaltar que a relutância da comunidade científica em aceitar uma nova teoria sobre o ser humano, como é o caso do Espiritismo, é natural e esperada. Cumpre notar que o Espiritismo trata de coisas que escapam ao domínio das ciências ordinárias, cujo objeto de estudo são os fenômenos e leis pertinentes à matéria. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse ponto.

Um elemento central na análise da ciência é a distinção entre teoria, método e objeto de estudo. As diversas ciências distinguem-se entre si, em primeira instância, por seus objetos de estudo, os conjuntos de fenômenos que investigam. Fenômenos mecânicos, elétricos, magnéticos e nucleares, por exemplo, são do escopo da física; a formação e dissociação de moléculas constitui objeto de estudo da química; a vida, em muitas de suas expressões, é examinada pela biologia. Existem, naturalmente, pontos de contato, interseções e hibridações entre as ciências, mas isso não dilui a distinção fundamental entre elas.

Ora, dada a diversidade de objetos de estudo, haverá diferenças expressivas nos métodos e características teóricas das várias ciências. A identificação de elementos comuns entre elas é tarefa mais difícil do que à primeira vista parece, constituindo um tópico dos mais importantes da área da filosofia denominada filosofia da ciência.

Nos artigos mencionados procurei apresentar alguns traços importantes dessa disciplina, em conexão com o exame do aspecto científico do Espiritismo. Uma tese central neles defendida é que o Espiritismo, tal como estruturado por Allan Kardec, exibe todas as características de uma genuína ciência, à luz da filosofia da ciência contemporânea. Não se deve, porém, confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência com a suposição falsa de que ele é parte das ciências acadêmicas, que tratam de fenômenos referentes à matéria.

No parágrafo 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos Kardec discorre lucidamente sobre o assunto, de uma perspectiva filosófica bem avançada para sua época, concluindo seguramente que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, isto é, das ciências acadêmicas. Retoma essa análise de forma mais extensa em O que é o Espiritismo, onde encontramos, por exemplo, este interessante raciocínio no capítulo I, segundo diálogo, seção “Oposição da ciência”:

As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.

Os do Espiritismo têm como agentes inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.

A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].

As corporações científicas não devem, nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

No primeiro capítulo de A Gênese, parágrafo 16, Kardec salienta, a esse propósito, que estudando domínios diferentes e complementares “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.

A autonomia do Espiritismo com relação às ciências ordinárias parece estar suficientemente demonstrada (não aqui, neste breve resumo, evidentemente, mas nos extensos estudos feitos por Kardec e outros pensadores espíritas). Preocupa a incompleta percepção desse ponto por muitos espíritas em nossos dias, aqueles que pretendem, como dizem, “trazer a ciência para o Espiritismo”. Não se dão conta adequadamente de que o Espiritismo já constitui por si uma ciência independente e vigorosa, e que, ademais, a peculiaridade de seu objeto de estudo torna fora de propósito qualquer hibridação fundamental com as ciências da matéria. Há, é claro, áreas periféricas de contato, como por exemplo, o estudo das enfermidades psicossomáticas, onde pode e deve haver contribuições mútuas.

Não se deve confundir o que estou dizendo com as justificadas críticas já avançadas por Kardec a pessoas que, em nome da ciência ou não, julgam o Espiritismo sem haver examinado atentamente todos os fatos de que trata, bem como sua estrutura teórica. Isso é inadmissível filosófica e cientificamente. Tal atitude infelizmente continua sendo comum, inclusive nos meios acadêmicos. A especialização que caracteriza a formação científica parece mesmo favorecê-la, com também notou Kardec no referido item de O Livro dos Espíritos:

Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.

Na pergunta formulada alude-se também à questão mais geral da posição da ciência acerca do espiritualismo. Conforme em outras palavras ressaltou Aécio Chagas em alguns de seus artigos mencionados na lista de referências, não faz muito sentido discutir se as ciências acadêmicas, enquanto conhecimento, são materialistas ou não. Foram concebidas expressamente para descrever e explicar exclusivamente os fenômenos materiais, não tendo nada a dizer sobre a disputa materialismo versus espiritualismo, que gira em torno da questão da existência de algo além da matéria.

Se se pergunta agora se a comunidade científica acadêmica é materialista ou não, a questão faz sentido, mas só admite resposta estatística, visto que a convicção pessoal de cada um de seus integrantes acerca desse problema filosófico não constitui critério necessário ou suficiente para a sua admissão na profissão. Parece certo que significativa parcela dos cientistas atuais é materialista, mas isso talvez apenas reflita o padrão geral de crença das sociedades nas quais mais prosperam as ciências, como sugere o Prof. Chagas.

Seja como for, nós espíritas não devemos nos inquietar com isso, como advertiu Kardec ainda no mesmo parágrafo de O Livro dos Espíritos, de onde extrairei mais este trecho, para concluir:

O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].

Quando as crenças espíritas se houverem difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se dará com o que tem acontecido com todas as idéias novas que hão encontrado oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.

* * *
No próximo artigo será analisado brevemente o estatuto científico de algumas abordagens recentes de investigação de fenômenos espíritas.
Referências:

(Alguns destes artigos encontram-se disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.
––. “O Espiritismo na Academia?”, Revista Internacional de Espiritismo, fevereiro de 1994, p. 20-22 e março de 1994, p. 41-43 .
––. “A ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
––. Ainda sobre as relações entre as ciências e o Espiritismo. (Submetido para publicação.)
CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.
––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. (O que é o Espiritismo. s. trad. 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
––. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme.Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento desse material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.


Artigo publicado em Reformador, novembro de 1999, pp. 344-346.


Leitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA ESPÍRITA
ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
A “CIÊNCIA OFICIAL”
A RELIGIÃO ESPÍRITA
REVISÃO DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS NO ESPIRITISMO
AS ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR QUE ALLAN KARDEC?
O PARADIGMA ESPÍRITA
A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html

A “CIÊNCIA OFICIAL”


Questões acerca da natureza do Espiritismo - IV

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo são tecidas algumas considerações acerca da ciência oficial ou acadêmica, que serão úteis para o esclarecimento de certas questões sobre a ciência espírita, nos artigos subseqüentes desta série.[1]

Questão:

Costuma-se dizer que a “ciência” aprova ou rejeita determinado ponto. O que devemos entender por isso? Existe realmente uma “posição oficial” da ciência? Nesse caso quais seriam os órgãos ou pessoas que poderiam ter tal prerrogativa, de determinar a posição oficial da ciência? Parece-nos que na época de Kardec essa frase normalmente se referia às grandes academias e aos órgãos oficiais dos estados europeus. Há hoje algo equivalente?

Resposta:

A autoridade de que a ciência desfruta hoje em dia entre o público em geral pode ser aquilatada pelo fato de ser freqüentemente explorada para induzir à aceitação de determinadas teses, processos, sistemas políticos, produtos de consumo, etc. Há um efeito quase que intimidador associado à rotulação de algo como ‘científico’. Bens de consumo variados, desde cremes dentais até sofisticados aparelhos eletrodomésticos são ditos terem sido elaborados por processos científicos, ou submetidos a testes científicos. Geralmente despreparadas para avaliar por si próprias se, em cada caso, a qualificação é ou não pertinente, as pessoas tornam-se vítimas de manipulações diversas.

Mesmo no plano das idéias e teorias – e isso é o que mais de perto nos interessa aqui –, a demanda por cientificidade é notória. Diversas disciplinas mais recentes na história do pensamento, ou menos seguras de seus fundamentos e métodos, procuram de alguma forma modelar-se pelas disciplinas mais estabelecidas e bem sucedidas, como a física, a química e a biologia, inquestionavelmente consideradas científicas. Em nome desse processo de modelagem, porém, têm-se produzido verdadeiras aberrações científicas, que retardam o desenvolvimento das disciplinas nascentes ou em vias de consolidação. Embora a proposta de aprender-se algo acerca da natureza da ciência, ou do chamado “método científico”, pela inspeção das disciplinas paradigmaticamente científicas seja adequada e mesmo indispensável, a falta de preparo filosófico tem amiúde levado ao seu fracasso parcial ou total.

Bastante diverso foi o resultado alcançado por Allan Kardec no desenvolvimento do Espiritismo. Possuidor de sólida formação filosófica e científica, ele soube imprimir às investigações dos novos fenômenos um cunho genuinamente científico, conforme procurei destacar nos artigos da lista de referências bibliográficas. A ciência espírita, cujos fundamentos ele lançou, têm por objeto de estudo o elemento espiritual do ser humano. Esse elemento manifesta-se em múltiplos fenômenos psicossomáticos, anímicos e mediúnicos, sendo estes últimos os que desencadearam as pesquisas iniciais e permitiram o estabelecimento das leis básicas da teoria.

Nos referidos trabalhos, argumento, ademais, que o Espiritismo constitui a única abordagem científica disponível para essa gama de fenômenos. As propostas alternativas surgidas após ele invariavelmente incorreram nas aludidas distorções de concepção, por falta, entre outras coisas importantes, de uma adequada percepção das diferenças de objetos de estudo relativamente às ciências exatas. Em sua lucidez, Kardec reconheceu-as prontamente, apontando-as em diversas de suas obras, como por exemplo no item 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos e ao longo das primeiras partes de O que é o Espiritismo e O Livro dos Médiuns. Estruturou então a teoria espírita em conformidade com as peculiaridades dos fenômenos de que trata, conferindo-lhe, ademais, consistência lógica, simplicidade, poder explicativo, abrangência, coerência e integração harmônica com ciências limítrofes, atributos igualmente necessários para qualquer disciplina que queira fazer jus ao título de ‘científica’.

Feitas essas observações preliminares (que serão parcialmente desenvolvidas nos artigos restantes desta série), posso adentrar agora mais diretamente o tópico específico da pergunta formulada. Felizmente, posso poupar-me à maior parte da tarefa, recomendando ao leitor a consulta dos artigos de Aécio P. Chagas, “O que é a Ciência?” e “A Ciência confirma o Espiritismo?”, incluídos na lista de referências bibliográficas. Nesses trabalhos a questão da ciência oficial, relativamente aos interesses espíritas, foi tratada de modo seguro e esclarecedor. Não me cabe aqui reproduzir seu conteúdo. Limitar-me-ei a relembrar alguns dos tópicos principais da análise do Prof. Chagas, estendendo um pouco a discussão para responder de forma explícita a pergunta que foi feita.

Uma distinção importante destacada nos trabalhos mencionados é aquela entre “ciência-conhecimento”, “ciência-atividade” e “ciência-comunidade”. Quando se afirma que a ciência aprova isso ou aquilo, a frase é passível de dupla interpretação: Ou significa que a coisa faz parte (ou pode ser deduzida) do corpo teórico paradigmático de uma das ciências maduras (física, química e biologia); ou, em sentido secundário, que a comunidade científica tem uma opinião mais ou menos geral a seu respeito, embora ela ainda não faça parte de nenhuma teoria bem estabelecida.

A idéia de uma “posição oficial” da ciência só é razoável se entendida com referência às teorias que, à época, integram os paradigmas das ciências maduras. Felizmente, não existe na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões, partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É inerente à natureza da ciência contemporânea a distribuição do poder de avaliação em múltiplas instâncias, entre as quais se encontram as academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa, agências de fomento e, principalmente, os periódicos especializados.

Os profissionais acadêmicos não ignoram que os jornais e revistas especializados canalizam hoje o grosso da produção científica, possuindo complexo sistema de filtragem que em inglês se chama de “double-blind refereeing”: os trabalhos submetidos para publicação são enviados anonimamente a vários membros conceituados da própria comunidade científica, que os examinam criticamente e anonimamente. Teses discrepantes dos paradigmas que não sejam maciçamente apoiadas por evidências experimentais e argumentos racionais são barradas por esse sistema. Se quisermos, podemos dizer que conflitam com a “posição oficial”, mas apenas nesse sentido específico. Não estou afirmando que o sistema seja infalível, mas ao lado de procedimentos semelhantes de rigor na preparação de profissionais, contratação, etc., asseguram o rigor das teorias, técnicas e processos da ciência, possibilitando o seu progresso seguro.

No tempo de Kardec as publicações periódicas eram em número bem menor e não haviam ainda assumido o papel central que desempenham hoje; o conhecimento científico era veiculado principalmente em livros e memórias, publicados sob iniciativa individual ou das academias. Estas últimas ocupavam, conforme se sugere na pergunta, um papel muito importante; as instâncias avaliatórias da ciência eram, pois, mais centralizadas. Não raro isso deu margem a abusos e decisões erradas, como aliás observou Kardec várias vezes, ao discutir o caráter falível das corporações científicas. Hoje abusos e erros naturalmente ainda ocorrem, porém são geralmente detectados com mais facilidade pela enorme e integrada malha da comunidade científica.

* * *

O próximo artigo examinará alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas, destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.

Referências:

(Vários destes artigos encontram-se, ao lado de outros sobre temas correlacionados, disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.
––. “A Ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.
––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com várias adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

Artigo publicado em Reformador, outubro de 1999, pp.


Leitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA ESPÍRITA
ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
AS RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A RELIGIÃO ESPÍRITA
REVISÃO DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS NO ESPIRITISMO
AS ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR QUE ALLAN KARDEC?
O PARADIGMA ESPÍRITA
A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html

A RELIGIÃO ESPÍRITA


Questões acerca da natureza do Espiritismo - III

Silvio Seno Chibeni

O presente artigo examina algumas questões ligadas ao aspecto religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado por Kardec ainda é objeto de discussão em alguns setores do movimento espírita.[1]

Questões:

a. Dentro dos conceitos atuais da ciência e da filosofia, como poderíamos classificar     o   Espiritismo? O que lhe parece a clássica apresentação do Espiritismo como uma         doutrina de conseqüências cientificas, filosóficas e religiosas?

b. Considerando essa forma de apresentar a doutrina, segundo seus aspectos básicos,          qual seria a diferença entre dizer-se “conseqüências religiosas” e “conseqüências                 morais”?
c. No GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo) tem-se discutido a aplicação da    designação de religião para o Espiritismo; aparentemente, não há divergências quanto à      sua classificação como ciência e filosofia. Segundo a filosofia, o que caracteriza uma            religião? Quais os limites entre ciência, filosofia, moral e religião? O Espiritismo é    uma religião?

Respostas:

A perspectiva para a compreensão do Espiritismo apontada no item (a) parece-me correta, desde que se mude um pouco a forma de expressão. Dizer que ele é uma doutrina “de conseqüências” científicas, filosóficas e morais implica considerá-lo como uma quarta coisa, da qual decorreriam essas conseqüências. Na verdade, poderíamos afirmar que ele constitui uma ciência associada a uma filosofia e a um sistema moral, ou, mudando a ênfase, uma filosofia com bases científicas e implicações morais.

Quanto aos itens (b) e (c), cumpre lembrar inicialmente que a moral (ou ética) é uma das áreas da filosofia, investigada com atenção por filósofos de todas as épocas, desde a Grécia Antiga até nossos dias. De modo muito simplificado, poderíamos defini-la como o estudo do bem e do mal. Seu problema fundamental é o estabelecimento de critérios pelos quais se possam distinguir as ações em boas e más, certas e erradas, ou, sob outro ângulo, avaliar criticamente os critérios propostos para tal fim pelas diferentes religiões, ideologias, sistemas políticos, etc.

Nunca houve uma sociedade humana civilizada totalmente destituída de códigos morais que estabelecessem limites para as ações dos indivíduos. Nos primórdios da civilização tais códigos usualmente baseavam-se nas concepções religiosas vigentes, a seu turno amplamente dependentes do ensino de indivíduos considerados especiais, tais como profetas, pitonisas, gurus, etc. Tais pessoas muitas vezes alegavam dispor de meios incomuns, sobrenaturais, de comunicação com a própria Divindade ou divindades; suas doutrinas eram, pois, tidas como “revelações”.

Especialmente a partir do Renascimento (séculos XV e XVI), a autoridade moral das religiões estabelecidas em tais bases começou a ser mais e mais questionada. O movimento intelectual de valorização das faculdades cognitivas naturais – a razão e a observação – encontrou terreno preparado pelas fragilidades teóricas do revelacionismo religioso que, ademais, havia tantas vezes conivido, legitimado ou participado diretamente de ações em franco desacordo com um certo sentido ético natural do ser humano (discriminações, perseguições, torturas, assassinatos, etc.).

Sob a influência vigorosa de grandes filósofos do período moderno, entre os quais cumpre destacar o inglês John Locke (1632-1704), as legislações civis dos povos mais esclarecidos foram se dissociando dos sistemas religiosos, quaisquer que fossem. Pontos altos desse processo foram, por exemplo, as revoluções inglesa (1688) e francesa (1789), e a assinatura da Constituição Americana (1789). Em todos esses episódios, os códigos de direitos e deveres dos cidadãos resultaram de deliberações e acordos tácitos ou explícitos de grupos laicos. Os filósofos acadêmicos modernos desenvolveram seus estudos éticos sob perspectivas diversas e nem sempre compatíveis umas com as outras, mas que em geral excluem consciente e explicitamente quaisquer fundamentos religiosos, teológicos ou místicos.

A moral sempre constituiu parte integrante das religiões. No entanto, estas não se resumem à proposição e defesa de sistemas morais, incluindo, de modo típico, cultos, liturgias e rituais diversos, hierarquias, princípios teológicos abstratos sem relação direta com a questão da conduta humana, etc. Foi essa bagagem-extra, aliás, o que mais repulsa causou aos chamados “livres-pensadores”, responsáveis pela renovação da filosofia e da ciência a partir do Renascimento, tendo conduzido, por um processo compreensível de exacerbação, ao ateísmo e ao materialismo, em graus sem precedentes na história da humanidade.

Perdidas as bases religiosas tradicionais, a ética teve dificuldades para estabelecer princípios de conduta objetivos. Nasceu daí uma vertente bastante visível na sociedade hodierna, que é o chamado relativismo ético, segundo o qual o que é certo ou errado, bom ou ruim, depende da pessoa, do grupo social, da época, etc. De forma oportunista, intelectuais (ou pseudo-intelectuais) têm explorado esse canal para tentar legitimar os mais aberrantes comportamentos individuais ou grupais, contribuindo assim decisivamente para a degeneração das estruturas psicológicas e sociais.

No campo da filosofia acadêmica, existem propostas éticas não-religiosas que procuram refutar o relativismo, dividindo-se em duas grandes classes: os sistemas éticos racionalistas, ou aprioristas, como o de Immanuel Kant (1724-1804), e o utilitarismo, que encontra raízes em Locke, mas só foi desenvolvido mais explicitamente por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se afirmar com razoável segurança que o efeito prático dos sistemas éticos do primeiro tipo sobre as sociedades contemporâneas é quase nulo, por razões que não vem ao caso examinar aqui. Quanto à segunda proposta, embora a palavra ‘utilitarismo’ tenha impropriamente adquirido uma conotação negativa fora dos círculos filosóficos, é inegável que repercutiu de forma profunda no estabelecimento dos melhores sistemas sociais existentes, quer do ponto de vista material, quer dos direitos humanos e do fomento às artes, ciências e filosofia. Mesmo nessas sociedades, porém, assiste-se hoje a crescente desvalorização das avaliações a longo prazo das ações humanas e ao esquecimento dos princípios filosóficos seguros que nortearam os seus fundadores, abrindo amplo espaço para o referido relativismo moral.

Quando devidamente compreendido, o Espiritismo traz contribuições importantes para todo esse panorama da ética, tão imperfeitamente esboçado aqui. Refinando e estendendo o conhecimento acerca do ser humano, ele permite a elaboração de uma ética objetiva e clara, explorando, com adaptações, a vertente de Bentham e Mill. Tratei desse assunto nos artigos “Os fundamentos da ética espírita” e “A excelência metodológica do Espiritismo” (seção 5), que devem ser consultados para o desenvolvimento ulterior desta resposta.

Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que com o conhecimento científico espírita a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo das conseqüências das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.

Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, a re-ligação da criatura ao Criador.

A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi lucidamente estudado e, a meu ver, esgotado, no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868. Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
* * *

No próximo artigo desta série começarão a ser abordadas algumas questões acerca da ciência espírita e temas correlacionados.

Referências:

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378. (Disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
––. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, p. 166-9.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)
––. Le Spiritisme est-il une religion? In: L’Obssession.Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l’Union Spirite, 1950. (Uma tradução confiável para o vernáculo, de Ismael Gomes Braga, pode ser encontrada no Reformador de março de 1976.)

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

Artigo publicado em Reformador, setembro de 1999, pp. 280-282.


Leitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA ESPÍRITA
ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
AS RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A “CIÊNCIA OFICIAL”
REVISÃO DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS NO ESPIRITISMO
AS ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR QUE ALLAN KARDEC?
O PARADIGMA ESPÍRITA
A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

REVISÃO DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?


Questões acerca da natureza do Espiritismo - II

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo analisa-se criticamente a proposta de revisão de certos termos utilizados em Espiritismo, que alguns alegam ser necessária para a “modernização” da doutrina ou para sua “adaptação” ao progresso da ciência. [1]

Questão:

Algumas pessoas alegam que é necessário atualizar os termos técnicos utilizados no Espiritismo. Para elas o uso de termos como ‘fluidos’, ‘mediunidade’, etc. prejudica a posição científica do Espiritismo. Há alguma fundamentação, em filosofia da ciência, para essas criticas? Sendo uma ciência independente, dedicada ao estudo de fenômenos que escapam ao escopo das ciências clássicas, o Espiritismo não teria a liberdade de definir seus próprios termos? Historicamente, o Espiritismo precede à metapsíquica e à parapsicologia, sendo também anterior às novas concepções de matéria e energia da física atual. Isso não lhe daria a posição de pioneiro no estudo e definição dos fenômenos espíritas, cabendo-lhe o direito de estabelecer sua própria nomenclatura?

Resposta:

As considerações sobre a natureza da linguagem apresentadas no primeiro artigo desta série já forneceram o essencial para esclarecer o presente problema. Igualmente, as afirmações corretas implícitas nas próprias interrogações do final da questão tornam a resposta quase desnecessária. Todavia, gostaria de acrescentar algo em sentido explícito.

De fato, propostas de revisão do vocabulário técnico do Espiritismo são bastante comuns hoje, especialmente por parte de pessoas com alguma familiaridade com disciplinas acadêmicas. Os termos mencionados como exemplo parecem, em particular, causar-lhes certo incômodo, sendo freqüentemente substituídos por palavras como ‘energia’ e ‘paranormalidade’, ‘sensibilidade’, etc. Imagina-se estar assim conferindo maior cientificidade ao Espiritismo, livrando-o de noções “ultrapassadas” do século XIX. Ora, o mais elementar senso filosófico mostra que não é no vocabulário que assenta o caráter científico ou não de uma disciplina.

As palavras são, como foi lembrado no artigo anterior, meros símbolos para a expressão de conceitos; se estes não encontrarem respaldo em uma teoria científica coerente, abrangente e empiricamente adequada (isto é, adaptada aos fatos), de nada adiantará modificá-las. Por outro lado, uma teoria científica não será substancialmente alterada pela modificação de seu vocabulário. Logo, qualquer alegação de que o Espiritismo tem de passar por uma atualização não pode limitar-se à substituição de palavras, como ingenuamente se procura fazer. Essa alegação só se poderia justificar a partir de uma análise profunda, exaustiva e meticulosa da teoria espírita e de todos os fatos de que trata, que revelasse racionalmente que ela não lhes dá explicação adequada, ou contém falhas de consistência lógica, propondo-se concretamente uma outra teoria melhor que a possa substituir. No parágrafo 14, n. 8, de O Livro dos Médiuns Kardec resume as condições para uma crítica sustentável do Espiritismo (e, aliás, de qualquer outra ciência) que, por sua lucidez e atualidade, merece ser aqui reproduzida:

O Espiritismo não pode considerar crítico sério senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.

Esse trecho serviu de mote para o artigo “A excelência metodológica do Espiritismo”, citado na lista de referências bibliográficas. Nele procuro mostrar, ainda que de forma breve e simplificada, que as condições para uma revisão do Espiritismo em nome da cientificidade até hoje não foram satisfeitas. A teoria espírita kardequiana tem tudo o que é essencial para sua classificação como uma ciência genuína, à luz das concepções atuais da filosofia da ciência. Não é naturalmente o caso de repetir aqui o que expus nesse trabalho e em outros sobre o mesmo tema. No entanto, parece-me importante particularizar um pouco a análise, com vistas aos exemplos dados na pergunta.

A palavra ‘mediunidade’ foi criada por Kardec para designar a faculdade que certos indivíduos possuem de servir, em maior ou menor grau e de modos diversos, de intermediários entre os Espíritos e os homens. Essa noção recebeu precisão e conteúdo cognitivo por sua inserção em uma teoria completa dos fenômenos mediúnicos, exposta principalmente em O Livro dos Médiuns (ver o artigo “Estudo sobre a mediunidade”, citado no final). Embora ela se encontre, como qualquer teoria científica, em contato periférico com teorias de áreas contíguas, de dentro e de fora do Espiritismo, possui bases de sustentação autônomas, não tendo que sofrer alterações substanciais ou terminológicas em virtude do que possa ocorrer nesses domínios conexos.

As modificações que se têm proposto para o Espiritismo geralmente limitam-se ao plano lingüístico, como se se tivesse vergonha de escrever ou pronunciar as palavras ‘médium’ e ‘mediunidade’, preferindo-se antes adornar o discurso com termos rebuscados, provenientes de linhas de investigação incipientes ou pseudo-científicas, como a metapsíquica, a parapsicologia e diversas vertentes ligadas à psicologia ou mesmo a doutrinas orientalistas.

É evidente que isso só contribui para aumentar as dificuldades de compreensão e comunicação ou, o que é pior, para dispersar as pesquisas relativamente ao núcleo teórico paradigmático da ciência espírita, com graves repercussões para o seu desenvolvimento. Constitui fato reconhecido entre os filósofos da ciência contemporâneos que as substituições de conceitos e teorias fundamentais numa ciência somente se justificam pela degeneração global do programa de pesquisa no qual se inserem, juntamente com o fornecimento efetivo de um programa alternativo que o suplante em coerência, abrangência, precisão e fertilidade heurística. Ora, não padece dúvida para qualquer estudioso isento que nada disso sequer esboçou-se no caso do Espiritismo.

Considerações semelhantes aplicam-se à palavra ‘fluido’. É certo que ao cunhar a expressão ‘fluidos espirituais’ para denotar certos elementos materiais “sutis” que tomam parte em processos diversos examinados pelo Espiritismo, como a ação dos Espíritos sobre a matéria ordinária (mediunidade, curas, passes, etc.), ou a constituição dos corpos e da ambiência dos Espíritos (perispírito, objetos do mundo espiritual, etc.), Kardec procurou analogias, ainda que tênues, com certos elementos que, segundo as melhores teorias físicas da época, participariam dos fenômenos elétricos, magnéticos ou térmicos: os chamados fluidos elétrico e magnético, e o calórico, igualmente invisíveis, sutis, imponderáveis.

Ora, como não houve mais do que analogia e apropriação de um símbolo lingüístico para construir uma expressão nova – ‘fluidos espirituais’, que em geral se simplificava para ‘fluidos’, dentro do contexto espírita – , não se segue que a teoria espírita tenha de ser modificada terminológica ou substancialmente na caracterização dos referidos processos porque as teorias físicas que sugeriram as analogias tenham sido alteradas ou substituídas no curso evolutivo da física.

Um historiador da ciência bem informado seguramente poderá encontrar diversas situações semelhantes no âmbito das ciências acadêmicas. Reportemo-nos de passagem, por exemplo, ao que aconteceu na química quando as teorias físicas sobre a estrutura da matéria se alteraram na década de 1920, com o desenvolvimento e aceitação da mecânica quântica. Embora os químicos tenham levado em conta a nova teoria física, dada a proximidade e as interseções entre as áreas, tendo-se mesmo criado ramos e técnicas de cálculo novos na química, as concepções e métodos referentes às ligações químicas, estruturas moleculares, etc. continuaram mais ou menos como eram, em um amplo espectro de investigações teóricas e experimentais.

Voltando ao caso do Espiritismo, salienta-se bem na pergunta que ele constitui “uma ciência independente, dedicada ao estudo de fenômenos que escapam ao escopo das ciências clássicas”, tendo “a liberdade de definir seus próprios termos”; e, poderia acrescentar: seus conceitos e teorias. Modificações nesses pontos só se legitimariam, repito, na medida em que análises rigorosas internas ao programa científico espírita indicassem sua necessidade.

Ainda com relação à noção de fluido, deve-se notar que ela não é tão abominada na física como parecem crer os reformistas. Em primeiro lugar, cumpre notar que todos os líquidos e gases são fluidos, e seu estudo é feito em diversas áreas da ciência, como a hidrodinâmica. Depois, quanto à eletricidade, magnetismo e termodinâmica, as teorias atuais prescindem dessa noção no nível operacional, tendo assumido feições preponderantemente matemáticas e preditivas. No entanto, quando se desce à análise de fundamentos – e raros cientistas dedicam-se a isso atualmente – percebe-se que, à semelhança das demais teorias da física, estão envoltas em problemas conceituais graves. Não é nada claro, por exemplo, o que seja um campo elétrico ou magnético (noções usadas nas teorias físicas que sucederam às teorias de fluidos), não do ponto de vista de sua caracterização matemática, é claro, mas de sua representação intuitiva, de sua essência, do modo pelo qual surge, se propaga e causa certos fenômenos. Lembremo-nos, por fim, que os próprios pais da teoria eletromagnética, como Faraday e Maxwell, não dispensaram o conceito de fluido quando se tratava de explicar – e não simplesmente calcular – os fenômenos.

Dir-se-á talvez que Einstein baniu esse conceito da ciência ao criar a teoria da relatividade restrita, em 1905. Embora essa afirmação se tenha tornado comum em certos círculos, entre os especialistas em fundamentos não há consenso sobre o ponto, não obstante seja claro que o chamado “éter eletromagnético” regido por leis mecânicas não compareça na aludida teoria. Mas essa não é a única teoria da ciência, nem tampouco está isenta de dificuldades conceituais e teóricas diversas. Evidentemente, este não é o lugar para adentrar esse tópico complexo. Fica, porém, uma advertência aos espíritas de boa vontade para que não se deixem influenciar facilmente por tais assertivas, antes que façam estudos profissionais, que levem em conta, por exemplo, a teoria da relatividade geral e todas as perplexidades que envolvem as teorias do espaço-tempo e da cosmologia contemporâneas, nas quais noções muito próximas à de fluido parecem estar encontrando lugar.

Apenas para concluir, vale mencionar que virou moda nos meios espíritas e semi-espíritas a substituição da palavra ‘fluido’ por ‘energia’, sempre no pressuposto de que é por aí que vai a ciência. Ora, assim como as noções de espaço, tempo, força, massa, carga elétrica, campo, etc., a noção de energia é objeto de inúmeras dificuldades conceituais, não se ganhando nada em clareza, precisão e cientificidade com a sua utilização, muito pelo contrário. Ademais, esse uso apresenta o inconveniente de se dar numa área distante da área de sua criação original, a física, representando uma enxertia no programa científico espírita, fonte certa de confusões.

A respeito da utilização das noções das palavras ‘fluido’, ‘energia’ e ‘magnetismo’ no Espiritismo, recomendo a leitura do artigos de Aécio P. Chagas, “Polissemias no Espiritismo” e “A ciência confirma o Espiritismo?” Outra análise profissional do emprego impróprio de noções científicas, em particular da noção de energia, no Espiritismo é feita no artigo “Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”, de Ademir L. Xavier Jr., que também consta da lista de referências bibliográficas.


* * *
No próximo artigo desta série será examinado o aspecto religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado por Kardec ainda parece não ser bem compreendido em alguns setores do movimento espírita.

Referências:

(Estes artigos e outros que tratam de assuntos correlacionados estão disponíveis também no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
CHAGAS, A. P. “A ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
––. “Polissemias no Espiritismo”, Revista Internacional de Espiritismo, setembro de 1996, p. 247-49.
CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Estudo sobre a mediunidade” (em co-autoria com Clarice Seno Chibeni), Reformador, agosto de 1997, p. 240-43 e 253-55.
KARDEC, A. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 59a ed., revista, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
XAVIER Jr., A. L. “Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”, Reformador, agosto de 1995, p. 244-46.

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.


Artigo publicado em Reformador, agosto de 1999, pp. 250-252.


Leitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA ESPÍRITA
ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
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http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html